Entre o clichê e o digital

Por Guto Souza

Talvez você não saiba, mas a Revista Cliche tem uma relação íntima com a fotografia – ao menos terminologicamente. Clichê é a chapa metálica com gravações em relevo que se utiliza em gráficas para a impressão de diversas cópias de um mesmo material. Derivado desse significado, o sentido figurado e mais conhecido da palavra é o da expressão comum, repetitiva. Mas as definições não param por aí: clichê (e aqui está o que você provavelmente não sabe) também denomina o negativo fotográfico. Em francês, língua de origem da palavra, “cliché” é inclusive sinônimo de “foto”.

Deparei pela primeira vez com esse significado de clichê ao ler uma revista portuguesa do início do século passado. As fotografias eram a grande sensação das publicações da época, pois foi apenas no fim do século XIX que a imprensa desenvolveu a tecnologia necessária para reproduzir imagens fotográficas. Retratos de eventos, pessoas e lugares de todo o mundo começavam a chegar aos olhos de indivíduos que mal conheciam o entorno de suas próprias cidades. E abaixo de cada foto ostentava-se o nome do autor: “Clichés do [fotógrafo]”.

Fiquei curioso com a utilização do termo “cliché”, e ao pesquisar sobre o assunto me interessei pela questão do suporte fotográfico. Atualmente temos câmeras pequenas e versáteis, que nos permitem fotografar em praticamente qualquer condição. Mas há 100 anos era necessário carregar uma geringonça pesada e desajeitada, além de negativos em vidro revestidos com emulsão de gelatina e sais de prata.

No início, com a daguerreotipia, o processo fotográfico não permitia a reprodução da imagem. Os retratos, feitos em chapas de cobre revestidas com prata polida, eram peças únicas. O primeiro clichê, ou seja, o primeiro negativo, foi inventado em 1835 com a calotipia. Esse processo, porém, acabou não se popularizando – além de não produzir uma imagem tão perfeita quanto a do daguerreótipo, a utilização do calótipo exigia o pagamento de direitos autorais a seu inventor, Henry Fox Talbot.

Fotografias geradas através da Daguerreotipia (esq) e Calotipia (dir)

Em 1851, enfim, surgiu a tecnologia de clichê livre de direitos de utilização: o colódio úmido. O método consiste em mergulhar chapas de vidro em solução de colódio e sais de prata, coloca-las na câmera, expor e revelar antes de o líquido secar. Uma vez que o negativo permite a impressão de várias cópias positivas, esse processo finalmente possibilitou a reprodutibilidade, característica que hoje consideramos inerente à fotografia, mas que nem sempre o foi.

O colódio foi substituído pela emulsão de gelatina e sais de prata, o vidro pela película plástica, e no fim do século XIX já tínhamos o clichê que sobreviveu comercialmente até os dias de hoje: o filme fotográfico.

Até então todos os suportes faziam registros apenas em preto e branco. Em 1907 os irmãos Lumière lançaram o Autochrome – processo a cores que utilizava chapas de vidro – e somente em 1934, com o Agfacolor Ultra, o colorido chegou à película. Aqui vale destacar o Kodachrome, processo cromogêneo em cores surgido em 1935 e considerado por muitos profissionais como o suporte fotográfico de melhor qualidade já inventado – melhor até que os processos digitais.

O Kodachrome não é exatamente um clichê, pois gera primariamente uma imagem positiva, e não negativa. Entretanto esse filme teve grande importância na história da fotografia. Até meados da década de 1990 era o principal suporte fotográfico utilizado por profissionais. Devido ao alto custo, porém, deixou de ser fabricado em 2010 – e deixou órfãos muitos fotógrafos. Entre eles o mito Steve McCurry, que solicitou à Kodak o último exemplar da película, fotografou com ele, e teve sua despedida registrada pela National Geographic. Sugiro que você assista ao documentário, mas se meia hora é muito tempo, clique aqui e veja as fotos do último rolo de Kodachrome.

O falecimento do célebre filme da Kodak, no entanto, é apenas a ponta do iceberg. A fotografia analógica caiu em desuso de maneira geral. Diante do moderno sensor digital o clichê perdeu sua importância, após 150 anos como personagem fundamental da fotografia. A tecnologia do suporte fotográfico, antes baseada em sais de prata que queimavam em contato com a luz, passou a depender de chips que convertem a luminosidade em sinais eletrônicos.

Apesar de radical, a mudança é justificável. A fotografia digital é mais rápida, eficiente e barata. Em vez de inúmeras películas, o fotógrafo carrega apenas um cartão de memória; o resultado é visto no instante seguinte ao clique, na tela da câmera, e não dias depois no laboratório de revelação; o compartilhamento das imagens, independente da distância entre emissor e receptor, é feito com o simples toque em um botão.

Ainda assim existem dois quesitos que tornam o clichê insubstituível: o charme e a aura de um suporte que perdurou por toda a história da fotografia, acompanhou os maiores fotógrafos e produziu as melhores fotos.

Em 1981, quando a primeira máquina digital foi anunciada, um alto funcionário da indústria de filmes fotográficos comentou: “Não nos assusta. Se fosse o contrário, existissem apenas essas imagens e então lançássemos o filme convencional, o público estaria muito mais entusiasmado”. Imagino que ele se arrependeu por não ter se preocupado com a nova tecnologia, mas em uma coisa estava certo: o filme entusiasma. Após essa revisita ao clichê, vou imediatamente ressuscitar minha boa e velha câmera analógica.

Guto Souza

Guto Souza

Guto Souza nasceu e vive em Curitiba. Publicitário por formação e fotógrafo por paixão. Clica diferentes temáticas e linguagens em busca das suas próprias. Seus textos sobre Fotografia são publicados aos sábados, quinzenalmente.

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Talvez você não saiba, mas a Revista Cliche tem uma relação íntima com a fotografia – ao menos terminologicamente. Clichê é a chapa metálica com gravações em relevo que se utiliza em gráficas para a impressão de diversas cópias de um mesmo material. Derivado desse significado, o sentido figurado e mais conhecido da palavra é o da expressão comum, repetitiva. Mas as definições não param por aí: clichê (e aqui está o que você provavelmente não sabe) também denomina o negativo fotográfico. Em francês, língua de origem da palavra, “cliché” é inclusive sinônimo de “foto”.

Deparei pela primeira vez com esse significado de clichê ao ler uma revista portuguesa do início do século passado. As fotografias eram a grande sensação das publicações da época, pois foi apenas no fim do século XIX que a imprensa desenvolveu a tecnologia necessária para reproduzir imagens fotográficas. Retratos de eventos, pessoas e lugares de todo o mundo começavam a chegar aos olhos de indivíduos que mal conheciam o entorno de suas próprias cidades. E abaixo de cada foto ostentava-se o nome do autor: “Clichés do [fotógrafo]”.

Fiquei curioso com a utilização do termo “cliché”, e ao pesquisar sobre o assunto me interessei pela questão do suporte fotográfico. Atualmente temos câmeras pequenas e versáteis, que nos permitem fotografar em praticamente qualquer condição. Mas há 100 anos era necessário carregar uma geringonça pesada e desajeitada, além de negativos em vidro revestidos com emulsão de gelatina e sais de prata.

No início, com a daguerreotipia, o processo fotográfico não permitia a reprodução da imagem. Os retratos, feitos em chapas de cobre revestidas com prata polida, eram peças únicas. O primeiro clichê, ou seja, o primeiro negativo, foi inventado em 1835 com a calotipia. Esse processo, porém, acabou não se popularizando – além de não produzir uma imagem tão perfeita quanto a do daguerreótipo, a utilização do calótipo exigia o pagamento de direitos autorais a seu inventor, Henry Fox Talbot.

Fotografias geradas através da Daguerreotipia (esq) e Calotipia (dir)

Em 1851, enfim, surgiu a tecnologia de clichê livre de direitos de utilização: o colódio úmido. O método consiste em mergulhar chapas de vidro em solução de colódio e sais de prata, coloca-las na câmera, expor e revelar antes de o líquido secar. Uma vez que o negativo permite a impressão de várias cópias positivas, esse processo finalmente possibilitou a reprodutibilidade, característica que hoje consideramos inerente à fotografia, mas que nem sempre o foi.

O colódio foi substituído pela emulsão de gelatina e sais de prata, o vidro pela película plástica, e no fim do século XIX já tínhamos o clichê que sobreviveu comercialmente até os dias de hoje: o filme fotográfico.

Até então todos os suportes faziam registros apenas em preto e branco. Em 1907 os irmãos Lumière lançaram o Autochrome – processo a cores que utilizava chapas de vidro – e somente em 1934, com o Agfacolor Ultra, o colorido chegou à película. Aqui vale destacar o Kodachrome, processo cromogêneo em cores surgido em 1935 e considerado por muitos profissionais como o suporte fotográfico de melhor qualidade já inventado – melhor até que os processos digitais.

O Kodachrome não é exatamente um clichê, pois gera primariamente uma imagem positiva, e não negativa. Entretanto esse filme teve grande importância na história da fotografia. Até meados da década de 1990 era o principal suporte fotográfico utilizado por profissionais. Devido ao alto custo, porém, deixou de ser fabricado em 2010 – e deixou órfãos muitos fotógrafos. Entre eles o mito Steve McCurry, que solicitou à Kodak o último exemplar da película, fotografou com ele, e teve sua despedida registrada pela National Geographic. Sugiro que você assista ao documentário, mas se meia hora é muito tempo, clique aqui e veja as fotos do último rolo de Kodachrome.

O falecimento do célebre filme da Kodak, no entanto, é apenas a ponta do iceberg. A fotografia analógica caiu em desuso de maneira geral. Diante do moderno sensor digital o clichê perdeu sua importância, após 150 anos como personagem fundamental da fotografia. A tecnologia do suporte fotográfico, antes baseada em sais de prata que queimavam em contato com a luz, passou a depender de chips que convertem a luminosidade em sinais eletrônicos.

Apesar de radical, a mudança é justificável. A fotografia digital é mais rápida, eficiente e barata. Em vez de inúmeras películas, o fotógrafo carrega apenas um cartão de memória; o resultado é visto no instante seguinte ao clique, na tela da câmera, e não dias depois no laboratório de revelação; o compartilhamento das imagens, independente da distância entre emissor e receptor, é feito com o simples toque em um botão.

Ainda assim existem dois quesitos que tornam o clichê insubstituível: o charme e a aura de um suporte que perdurou por toda a história da fotografia, acompanhou os maiores fotógrafos e produziu as melhores fotos.

Em 1981, quando a primeira máquina digital foi anunciada, um alto funcionário da indústria de filmes fotográficos comentou: “Não nos assusta. Se fosse o contrário, existissem apenas essas imagens e então lançássemos o filme convencional, o público estaria muito mais entusiasmado”. Imagino que ele se arrependeu por não ter se preocupado com a nova tecnologia, mas em uma coisa estava certo: o filme entusiasma. Após essa revisita ao clichê, vou imediatamente ressuscitar minha boa e velha câmera analógica.

Guto Souza

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Guto Souza nasceu e vive em Curitiba. Publicitário por formação e fotógrafo por paixão. Clica diferentes temáticas e linguagens em busca das suas próprias. Seus textos sobre Fotografia são publicados aos sábados, quinzenalmente.

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