Esse corpo que te seduz – III
Para pensar em como o corpo nu se configura no regime visual ocidental, continuamos a estória iniciada no texto anterior. Até o fim do século XIX, somente modelos homens eram admitidos nos cursos de modelo vivo, e foi só a partir de 1880 que a academia francesa, a partir de reformas didáticas, abriu as portas para modelos femininos. A partir dessa década, um novo recurso começou a ser utilizado: a fotografia. Junto com ele, novos desdobramentos em relação à construção do nu no imaginário social, pois a fotografia permitia a reprodução, e isso será observado nos métodos de pintura à partir da segunda metade do século XIX.
“Trabalhar despido” no século XIX nos indica uma condição de trabalho no mínimo duvidosa. Tanto é verdade que artistas e modelos viraram tema recorrente da literatura da época, até mesmo em Émile Zola. Conta-se que, na década de 1880, a porta da École des Beux-arts se enchia nas segundas feiras de modelos procurando trabalho para a semana – “parisienses, muitos italianos e alguns negros”, às vezes famílias inteiras. As moças, belas jovens brancas. Na seleção, os candidatos eram postos nus e então, normalmente escolhidos aqueles que apresentavam “boas formas” e já possuíam algum tipo de experiência para as poses.
Em toda a história do curso e da representação na arte, o nu acadêmico existe como propósito científico, ou seja, da representação do corpo enquanto estudo da natureza. Enquanto isso, as questões de sexualidade e erotismo eram praticamente negadas e isso criava, veja você, um distanciamento da academia em relação à realidade. A não representação do sexo aguçava ainda mais a questão do “proibido”, que era até então camuflada em elementos mitológicos ou religiosos.
Paralelo a isso, bem se sabe que tão logo a fotografia surgiu, como meio de registro e análise, as primeiras fotografias de nu começaram a aparecer. A utilização da fotografia no estudo do nu, como forma de registro e análise, mostra a apropriação da arte tradicional em relação ao recurso fotográfico. Fotografar o modelo vivo indicava mudanças tanto no método quanto na representação desse estudo. Certamente que o rebuliço foi grande, pois, se por um lado a fotografia ampliava os recursos do artista, por outro, barrava o movimento da pose – o que levou inclusive alguns a falarem do fim da profissão.
É interessante citar que, ainda nos entornos de 1850, artistas como Eugéne Delacroix já costumava comprar fotografias (daguerreotipos) de modelos nus femininos, bem ao contrário da academia, que nessa época só fazia a admissão de modelos masculinos. Esses daguerreotipos eram bem semelhantes às pinturas na questão da composição: normalmente femininos e em poses artísticas, possuíam cenário montado e iluminação adequada. Porém, muitas dessas fotografias passaram a adquirir cunho erótico, levando inclusive à prisão de modelos e fotógrafos nessa época.
Apesar da crítica, à medida que a modernidade se aproximava, sua utilização era cada vez mais significativa e com isso, cada vez mais a fotografia de nu se reproduzia e já no início do século XX, revistas e catálogos especializados começaram a surgir no ramo. Nelas, modelos homens, mulheres, crianças, nus ou semi se apresentavam em uma série de poses, incluindo as clássicas, e o artista podia escolher a que mais lhe agradasse.
De um modo geral, esse mesmo nu cultivado e apreciado na arte era proporcionalmente ocultado na vida cotidiana. Rumo ao século XX, à medida que o tempo passava e a vida se movimentava nas metrópoles europeias, a tensão entre clássico versus contemporâneo estreitava, e as representações apresentavam cada vez mais a sexualidade com menos justificativa, quase que em uma crise. Isso aconteceu justamente pela necessidade que os artistas sentiam de abandonar de vez esse idealismo, o que acabou por marcar a virada do século.
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