Dilemas do Design VI – valor e avaliação

Por Marcos Beccari

“O segredo da maestria é que não há mestre.” – Georges Gusdorf, Professores para quê? (São Paulo, Martins Fontes, p. 318).

Imagine que você é um professor de design editorial e nenhum de seus alunos sabe o que significa “kerning”. Exceto um, que inclusive trabalha nessa área já faz uns dez anos. A princípio, você teria duas opções: (1) começar do básico e fingir que aquele aluno não existe, nota 10 pra ele e pronto; (2) avaliar cada aluno de acordo com seu próprio “esforço”, isto é, do quanto cada aluno progride dentro de seu “nível” individual.

O problema da primeira opção é evidente: o que significa uma faculdade diante de uma CTPS surrada? Pegue o teu diploma na lixeira mais próxima. Agora vamos ao sutilíssimo problema da segunda opção: aquele aluno lhe apresenta uma revista para a qual ele já trabalha faz tempo, ao passo que os demais alunos passaram dias e madrugadas começando uma revista do zero. Seguindo a lógica do “esforço”, todo mundo tira uns 9 e o aluno experiente tira 3. O argumento será infalível: mas professor, eu apresentei o melhor trabalho da sala inteira!

Tive a oportunidade de ser este aluno e de ser o professor deste aluno. Como aluno, nunca deixei barato e exigia infinitas reavaliações, raramente obtendo êxito. No papel de professor, comecei perguntando para o indivíduo se ele gostava de música (coisa genérica de que todo gosta). Passei a conversar com ele sobre composição e estética musical (Adorno, Stockhausen, John Cage etc.) sempre meia hora antes das aulas. De repente ele se tornou o aluno mais engajado da turma, mesmo tirando notas baixas no começo.

Obviamente não se trata de uma solução. Foi apenas uma gambiarra. Um ambiente pré-formatado para sujeitar várias pessoas em relação a um suposto detentor do conhecimento definitivamente não tem solução. É ali que se produz e se propaga nossa obediência ao dogma do “necessário”: cumprir metas, fazer contatos, somar resultados, acumular pontos e ser bem-sucedido – ideias que sustentam políticas públicas, mercado de trabalho, família etc.

Pois é, o buraco é sempre muito mais embaixo (não dá pra falar seriamente disso em menos de cem páginas), mas acho que, na superfície, o problema do ensino do design aparece como recalque da relação entre avaliação e valor: o ato de avaliar serve necessariamente como princípio dos valores que estão sendo avaliados. Não há avaliação sem valores prévios, mas é no avaliar que os valores se fundam. Relevar essa simples relação implica recalcar uma questão fundamental: qual o valor da avaliação em si?

Se não vemos o menor sentido nessa pergunta é porque já consideramos a avaliação como parte inerente do aprendizado, como algo natural, como procedimento necessário em todos os âmbitos da vida (na empresa, na escola, nas relações cotidianas e consigo mesmo). Não questionamos se esse valor “natural” somente é possível pela imposição de um poder, de um modo de agir, de um padrão a partir do qual qualquer valor possa ser reconhecido como válido.

Pouco importa se a avaliação é qualitativa ou quantitativa, diagnóstica ou processual – ou mesmo quando o avaliado passa a avaliar o avaliador –, no fundo o objetivo é o mesmo: reafirmar o conjunto de valores que norteiam a avaliação. O pressuposto é o de que existe um consenso não apenas sobre o “conteúdo” avaliado, mas principalmente sobre a conduta “adequada” em relação a tal conteúdo: interesse, dedicação, esforço, complacência e não-escolha (a única escolha permitida já foi previamente escolhida).

Não bastaria, portanto, simplesmente avaliarmos tal conduta como substituição da diversidade pela homogeneidade, como discurso da “pluralidade” imposto pela ditadura da maioria, como critério de inclusão/exclusão baseado na (re)produção e apropriação de bens e vontades alheias. Tudo isso ainda separaria as vítimas dos carrascos, como se houvesse critério suficiente para tanto.

O que bastaria é começar e continuar questionando (o que implica continuar duvidando de) quais valores são estes (sobretudo nos mesmos ambientes em que são veiculados/recalcados) que sustentam nosso ideal de uma sociedade pacífica e justa, fundada numa prática cidadã e democrática que enaltece a ascensão social pelo trabalho e pelo estudo. Não se trata de questionar diretamente a sociedade; acima de tudo, trata-se de um exercício de resistência e de reconstrução de si mesmo sem o qual permanecemos no papel de figurantes (“competidores”) e nunca no de agenciadores (autores de si) sociais.

No âmbito específico do design, desconfio que o valor da avaliação (no ensino e no mercado) resida numa mediação através da qual o designer possa subverter valores que nele subsistem.

Nesse sentido, o objetivo do professor seria o de conseguir deixar de ser professor em relação a cada aluno: qualquer escolha é válida se não houver valores prévios, de modo que a avaliação só se torna possível a partir do momento em que cada um se questionar, por conta própria, sobre quais valores estão em jogo na avaliação. No fim das contas, pois, a avaliação ainda existiria, mas somente na medida em que ela mesma é desconstruída.

Claro que é inconcebível tanto na sala de aula quanto na agência/escritório – disso eu não consigo duvidar. Mas já experimentei e continuo experimentando tal potencialidade pelos “corredores”, onde muitos valores se cruzam e se confundem. Nada ali é didático, todo ruído acontece pela primeira vez. Não há mestre nem aprendiz, apenas amadores que não se levam tanto a sério e, justamente por isso, permanecem tão lúcidos e inquietos.

Marcos Beccari

Marcos Beccari

Doutorando em Educação na USP, designer gráfico e mestre em Design pela UFPR. Professor substituto no curso de Bacharelado em Design Gráfico na UFPR. Interessa-se por Filosofia, Psicologia e Comunicação, o que o levou a pesquisar sobre Filosofia do Design e a encarar o design como articulação simbólica na mediação ficcional que organiza o real. Além de atuar como professor e pesquisador, coordena o blog Filosofia do Design, integra o podcast AntiCast, é membro do projeto "Cinema e Educação: tela, espelho e janela" (USP-Fapesp) e colabora com outros blogs/revistas de design e comunicação.

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Por Marcos Beccari

“O segredo da maestria é que não há mestre.” – Georges Gusdorf, Professores para quê? (São Paulo, Martins Fontes, p. 318).

Imagine que você é um professor de design editorial e nenhum de seus alunos sabe o que significa “kerning”. Exceto um, que inclusive trabalha nessa área já faz uns dez anos. A princípio, você teria duas opções: (1) começar do básico e fingir que aquele aluno não existe, nota 10 pra ele e pronto; (2) avaliar cada aluno de acordo com seu próprio “esforço”, isto é, do quanto cada aluno progride dentro de seu “nível” individual.

O problema da primeira opção é evidente: o que significa uma faculdade diante de uma CTPS surrada? Pegue o teu diploma na lixeira mais próxima. Agora vamos ao sutilíssimo problema da segunda opção: aquele aluno lhe apresenta uma revista para a qual ele já trabalha faz tempo, ao passo que os demais alunos passaram dias e madrugadas começando uma revista do zero. Seguindo a lógica do “esforço”, todo mundo tira uns 9 e o aluno experiente tira 3. O argumento será infalível: mas professor, eu apresentei o melhor trabalho da sala inteira!

Tive a oportunidade de ser este aluno e de ser o professor deste aluno. Como aluno, nunca deixei barato e exigia infinitas reavaliações, raramente obtendo êxito. No papel de professor, comecei perguntando para o indivíduo se ele gostava de música (coisa genérica de que todo gosta). Passei a conversar com ele sobre composição e estética musical (Adorno, Stockhausen, John Cage etc.) sempre meia hora antes das aulas. De repente ele se tornou o aluno mais engajado da turma, mesmo tirando notas baixas no começo.

Obviamente não se trata de uma solução. Foi apenas uma gambiarra. Um ambiente pré-formatado para sujeitar várias pessoas em relação a um suposto detentor do conhecimento definitivamente não tem solução. É ali que se produz e se propaga nossa obediência ao dogma do “necessário”: cumprir metas, fazer contatos, somar resultados, acumular pontos e ser bem-sucedido – ideias que sustentam políticas públicas, mercado de trabalho, família etc.

Pois é, o buraco é sempre muito mais embaixo (não dá pra falar seriamente disso em menos de cem páginas), mas acho que, na superfície, o problema do ensino do design aparece como recalque da relação entre avaliação e valor: o ato de avaliar serve necessariamente como princípio dos valores que estão sendo avaliados. Não há avaliação sem valores prévios, mas é no avaliar que os valores se fundam. Relevar essa simples relação implica recalcar uma questão fundamental: qual o valor da avaliação em si?

Se não vemos o menor sentido nessa pergunta é porque já consideramos a avaliação como parte inerente do aprendizado, como algo natural, como procedimento necessário em todos os âmbitos da vida (na empresa, na escola, nas relações cotidianas e consigo mesmo). Não questionamos se esse valor “natural” somente é possível pela imposição de um poder, de um modo de agir, de um padrão a partir do qual qualquer valor possa ser reconhecido como válido.

Pouco importa se a avaliação é qualitativa ou quantitativa, diagnóstica ou processual – ou mesmo quando o avaliado passa a avaliar o avaliador –, no fundo o objetivo é o mesmo: reafirmar o conjunto de valores que norteiam a avaliação. O pressuposto é o de que existe um consenso não apenas sobre o “conteúdo” avaliado, mas principalmente sobre a conduta “adequada” em relação a tal conteúdo: interesse, dedicação, esforço, complacência e não-escolha (a única escolha permitida já foi previamente escolhida).

Não bastaria, portanto, simplesmente avaliarmos tal conduta como substituição da diversidade pela homogeneidade, como discurso da “pluralidade” imposto pela ditadura da maioria, como critério de inclusão/exclusão baseado na (re)produção e apropriação de bens e vontades alheias. Tudo isso ainda separaria as vítimas dos carrascos, como se houvesse critério suficiente para tanto.

O que bastaria é começar e continuar questionando (o que implica continuar duvidando de) quais valores são estes (sobretudo nos mesmos ambientes em que são veiculados/recalcados) que sustentam nosso ideal de uma sociedade pacífica e justa, fundada numa prática cidadã e democrática que enaltece a ascensão social pelo trabalho e pelo estudo. Não se trata de questionar diretamente a sociedade; acima de tudo, trata-se de um exercício de resistência e de reconstrução de si mesmo sem o qual permanecemos no papel de figurantes (“competidores”) e nunca no de agenciadores (autores de si) sociais.

No âmbito específico do design, desconfio que o valor da avaliação (no ensino e no mercado) resida numa mediação através da qual o designer possa subverter valores que nele subsistem.

Nesse sentido, o objetivo do professor seria o de conseguir deixar de ser professor em relação a cada aluno: qualquer escolha é válida se não houver valores prévios, de modo que a avaliação só se torna possível a partir do momento em que cada um se questionar, por conta própria, sobre quais valores estão em jogo na avaliação. No fim das contas, pois, a avaliação ainda existiria, mas somente na medida em que ela mesma é desconstruída.

Claro que é inconcebível tanto na sala de aula quanto na agência/escritório – disso eu não consigo duvidar. Mas já experimentei e continuo experimentando tal potencialidade pelos “corredores”, onde muitos valores se cruzam e se confundem. Nada ali é didático, todo ruído acontece pela primeira vez. Não há mestre nem aprendiz, apenas amadores que não se levam tanto a sério e, justamente por isso, permanecem tão lúcidos e inquietos.

Marcos Beccari

Marcos Beccari

Doutorando em Educação na USP, designer gráfico e mestre em Design pela UFPR. Professor substituto no curso de Bacharelado em Design Gráfico na UFPR. Interessa-se por Filosofia, Psicologia e Comunicação, o que o levou a pesquisar sobre Filosofia do Design e a encarar o design como articulação simbólica na mediação ficcional que organiza o real. Além de atuar como professor e pesquisador, coordena o blog Filosofia do Design, integra o podcast AntiCast, é membro do projeto "Cinema e Educação: tela, espelho e janela" (USP-Fapesp) e colabora com outros blogs/revistas de design e comunicação.

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