Esse corpo que te seduz – II

Por Carol Zanelatto

O desenho do corpo humano é certamente um dos alicerces da arte; e no processo de investigação que se tornou esse estudo anatômico, a presença real e física do corpo é mais do que necessária. Com a prática do modelo vivo, a renascença assume caráter científico em relação ao nu. Nessa estória toda, diz-se que Da Vinci começou a roubar cadáveres e então, antes que as escolas de arte virassem um grande necrotério, estas começam a admitir modelos vivos em suas aulas – inaugurado pela Académie Royale de Peinture et Sculpture, já em sua fundação, em 1648.

Aula de desenho na Académie Royale de Peinture et de Sculpture, Paris, 1763

Aula de desenho na Académie Royale de Peinture et de Sculpture, Paris, 1763

Na école du modèle,  como era chamada dentro da Académie, cabia ao modelo – unicamente masculino – posar  nos moldes da antiguidade clássica e aulas eram configuradas do modo que basicamente perdura até os dias de hoje: em exercícios diários, o professor escolhia as poses e, à sua maneira, auxiliava os alunos nos desenhos. Então, assim como nas escolas, os exercícios com modelo vivo começaram a fazer parte do atelier dos artistas, devido à liberdade do próprio artista de ter o modelo inteiramente à sua disposição. Ter o modelo diariamente no atelier simboliza a atenção total do modelo para o artista, que além de ter liberdade e exclusividade nos estudos de pose, luz e espaço, se obriga também a produzir em um tempo de determinado, resultando no aprimoramento da técnica.

François-Guillaume Ménageon, Hercule ao Repos, Paris, séc. XVIII

François-Guillaume Ménageon, Hercule ao Repos, Paris, séc. XVIII

Aí, é interessante perceber o peso que as escolas de arte possuíam, de uma forma geral, na alta camada da sociedade europeia (aí evidenciada pela sociedade francesa) e, o ponto principal: a importância do modelo vivo aos estudos da arte. Já no início da école du modèle  era concedido ao modelo uma espécie de título de “cidadão honorário” do governo francês que o garantia algumas condições sociais privilegiadas, como o direito de porte de espada, na tentativa de compensar os entraves morais da profissão.

Discípulo de Joseph Marie-Vien, Jacques-Louis David defende a utilização do modelo em todas as fases de produção, do esboço à pintura

Discípulo de Joseph Marie-Vien, Jacques-Louis David defende a utilização do modelo em todas as fases de produção, do esboço à pintura

No curso da história, a retomada do classicismo no século XVIII como “vanguarda vigente” aguça ainda mais a prática do modelo vivo – o neoclassicismo encontra no estudo do nu a ligação direta com o modelo grego e a questão da beleza ideal. A representação perfeita do corpo humano é seguida pelos modelos na referência das estátuas gregas e essa rigidez nos padrões clássicos será mantida rigorosamente nas escolas de arte do ocidente até a segunda metade do século XIX – A partir daí, algumas mudanças no sistema didático das escolas em alguns cantos do mundo começaram a ocorrer, garantindo uma gradativa libertação do classicismo. Como exemplo, as academias de Madrid e Córdoba, que até então enfrentavam resistência religiosa em relação à exposição do nu. Na Itália, estudos anatômicos de medicina foram incorporados em algumas escolas. De uma forma geral, quando o cansaço do público foi notável em relação à cópia das estátuas gregas e na academia, as poses delongadas e repetitivas dos modelos vivos faziam com que os alunos criassem vícios de memória, levando a um “saco cheio do modelo clássico”. A partir desse período, Viollet Le Duc na escola francesa, defendendo a livre observação da natureza, aumentava o nível de dificuldade dos exercícios criando poses dinâmicas e em movimento aos modelos, o que fazia com que os alunos treinassem a memória e o poder de observação, se concentrando e pensando sobre o que está sendo desenhado ao invés de desenhar de forma automática e desestimulante.

Nu masculino, Litographie d'aprés nature, Académie aux deux crayons, séc XIX

Nu masculino, Litographie d’aprés nature, Académie aux deux crayons, séc XIX

Do outro lado do atlântico, depois que a expedição francesa chega ao Brasil, Dom João VI instaura a Academia Imperial de Belas Artes, seguindo rigidamente o modelo francês e clássico.

Sem dúvida a instauração da academia imperial de Belas artes foi sofrida: O curso de modelo vivo foi iniciado alguns anos depois da fundação da escola, logo que Taunay assumiu sua direção. Com isso, é perceptível que as aulas da escola imperial foram prejudicadas visto que era a primeira academia de artes do Brasil e estamos falando de uma sociedade colonial – não havia modelos experientes, profissão modelo vivo ou qualquer coisa do tipo.  Sobre isso, anedotas da época contam que o os alunos trocavam os modelos reais pelas idealizações do papel, sugerindo que seus modelos não eram adequados; e que inclusive, houve a tentativa de se empregar escravos como modelo, porque esses possuíam “formas artísticas”.

Academia Imperial de Belas artes, Rio de Janeiro, 1891

Academia Imperial de Belas artes, Rio de Janeiro, 1891

“O senhor director recommendou novamente aos senhores professores não se descuidassem de procurar algum homem que queira servir como modelo vivo, ainda que fosse hum preto, visto haver entre estes, individuos dotados de formas artísticas. (Ata de 1/3/1837)”

Tratou-se novamente da necessidade de abrir quanto antes a classe de modelo vivo; e não há nisto pouca difficuldade: pois hum preto que já estava ajustado deixa actualmente de comparecer. (Ata de 6/3/1837)”

Essa tentativa, contudo, não deu certo: até a primeira metade do século XIX, a academia empregou modelos inadequados que, por mais “artísticos” que fossem seus corpos, não possuíam experiência alguma ou os poucos encontrados não se sustentavam muito tempo na profissão, principalmente pelas questões morais. Representando um problema que indicava uma precariedade no curso e que era certamente consequência dessa sociedade colonial, a profissão de modelo vivo começou a estabelecer-se no Brasil a partir da segunda metade do século XIX, ainda que tardiamente em relação ao modelo francês.  Lá, apesar das novidades do sistema didático iniciadas por Viollet Le Duc, o curso continuava em sua mesma forma em relação aos modelos, o que deixava cada vez mais evidente o desgaste dos profissionais, sem mencionar toda a questão moral que isso envolvia. A partir de 1880, o curso passou a admitir modelos femininos – um pano pra manga que nos garante uma reflexão próxima.

Referências

  • DIAS, Elaine. Um breve percurso pela história do Modelo Vivo no Século XIX – Princípios do método, a importância de Viollet Le Duc e o uso da fotografia. 19&20, Rio de Janeiro, v. II, n. 4, out 2007. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/ensino_artistico/ed_mv.htm>

 

Carol Zanelatto

Carol Zanelatto

é estudante de Design de Produto da UFPR e mantém um caso de amor entre tantas outras coisas, com você, o mundo, a arte e a CORDe Curitiba

Conteúdo relacionado

Comentários

Os comentários estão encerrados.

Esse corpo que te seduz – II

Por Carol Zanelatto

O desenho do corpo humano é certamente um dos alicerces da arte; e no processo de investigação que se tornou esse estudo anatômico, a presença real e física do corpo é mais do que necessária. Com a prática do modelo vivo, a renascença assume caráter científico em relação ao nu. Nessa estória toda, diz-se que Da Vinci começou a roubar cadáveres e então, antes que as escolas de arte virassem um grande necrotério, estas começam a admitir modelos vivos em suas aulas – inaugurado pela Académie Royale de Peinture et Sculpture, já em sua fundação, em 1648.

Aula de desenho na Académie Royale de Peinture et de Sculpture, Paris, 1763

Aula de desenho na Académie Royale de Peinture et de Sculpture, Paris, 1763

Na école du modèle,  como era chamada dentro da Académie, cabia ao modelo – unicamente masculino – posar  nos moldes da antiguidade clássica e aulas eram configuradas do modo que basicamente perdura até os dias de hoje: em exercícios diários, o professor escolhia as poses e, à sua maneira, auxiliava os alunos nos desenhos. Então, assim como nas escolas, os exercícios com modelo vivo começaram a fazer parte do atelier dos artistas, devido à liberdade do próprio artista de ter o modelo inteiramente à sua disposição. Ter o modelo diariamente no atelier simboliza a atenção total do modelo para o artista, que além de ter liberdade e exclusividade nos estudos de pose, luz e espaço, se obriga também a produzir em um tempo de determinado, resultando no aprimoramento da técnica.

François-Guillaume Ménageon, Hercule ao Repos, Paris, séc. XVIII

François-Guillaume Ménageon, Hercule ao Repos, Paris, séc. XVIII

Aí, é interessante perceber o peso que as escolas de arte possuíam, de uma forma geral, na alta camada da sociedade europeia (aí evidenciada pela sociedade francesa) e, o ponto principal: a importância do modelo vivo aos estudos da arte. Já no início da école du modèle  era concedido ao modelo uma espécie de título de “cidadão honorário” do governo francês que o garantia algumas condições sociais privilegiadas, como o direito de porte de espada, na tentativa de compensar os entraves morais da profissão.

Discípulo de Joseph Marie-Vien, Jacques-Louis David defende a utilização do modelo em todas as fases de produção, do esboço à pintura

Discípulo de Joseph Marie-Vien, Jacques-Louis David defende a utilização do modelo em todas as fases de produção, do esboço à pintura

No curso da história, a retomada do classicismo no século XVIII como “vanguarda vigente” aguça ainda mais a prática do modelo vivo – o neoclassicismo encontra no estudo do nu a ligação direta com o modelo grego e a questão da beleza ideal. A representação perfeita do corpo humano é seguida pelos modelos na referência das estátuas gregas e essa rigidez nos padrões clássicos será mantida rigorosamente nas escolas de arte do ocidente até a segunda metade do século XIX – A partir daí, algumas mudanças no sistema didático das escolas em alguns cantos do mundo começaram a ocorrer, garantindo uma gradativa libertação do classicismo. Como exemplo, as academias de Madrid e Córdoba, que até então enfrentavam resistência religiosa em relação à exposição do nu. Na Itália, estudos anatômicos de medicina foram incorporados em algumas escolas. De uma forma geral, quando o cansaço do público foi notável em relação à cópia das estátuas gregas e na academia, as poses delongadas e repetitivas dos modelos vivos faziam com que os alunos criassem vícios de memória, levando a um “saco cheio do modelo clássico”. A partir desse período, Viollet Le Duc na escola francesa, defendendo a livre observação da natureza, aumentava o nível de dificuldade dos exercícios criando poses dinâmicas e em movimento aos modelos, o que fazia com que os alunos treinassem a memória e o poder de observação, se concentrando e pensando sobre o que está sendo desenhado ao invés de desenhar de forma automática e desestimulante.

Nu masculino, Litographie d'aprés nature, Académie aux deux crayons, séc XIX

Nu masculino, Litographie d’aprés nature, Académie aux deux crayons, séc XIX

Do outro lado do atlântico, depois que a expedição francesa chega ao Brasil, Dom João VI instaura a Academia Imperial de Belas Artes, seguindo rigidamente o modelo francês e clássico.

Sem dúvida a instauração da academia imperial de Belas artes foi sofrida: O curso de modelo vivo foi iniciado alguns anos depois da fundação da escola, logo que Taunay assumiu sua direção. Com isso, é perceptível que as aulas da escola imperial foram prejudicadas visto que era a primeira academia de artes do Brasil e estamos falando de uma sociedade colonial – não havia modelos experientes, profissão modelo vivo ou qualquer coisa do tipo.  Sobre isso, anedotas da época contam que o os alunos trocavam os modelos reais pelas idealizações do papel, sugerindo que seus modelos não eram adequados; e que inclusive, houve a tentativa de se empregar escravos como modelo, porque esses possuíam “formas artísticas”.

Academia Imperial de Belas artes, Rio de Janeiro, 1891

Academia Imperial de Belas artes, Rio de Janeiro, 1891

“O senhor director recommendou novamente aos senhores professores não se descuidassem de procurar algum homem que queira servir como modelo vivo, ainda que fosse hum preto, visto haver entre estes, individuos dotados de formas artísticas. (Ata de 1/3/1837)”

Tratou-se novamente da necessidade de abrir quanto antes a classe de modelo vivo; e não há nisto pouca difficuldade: pois hum preto que já estava ajustado deixa actualmente de comparecer. (Ata de 6/3/1837)”

Essa tentativa, contudo, não deu certo: até a primeira metade do século XIX, a academia empregou modelos inadequados que, por mais “artísticos” que fossem seus corpos, não possuíam experiência alguma ou os poucos encontrados não se sustentavam muito tempo na profissão, principalmente pelas questões morais. Representando um problema que indicava uma precariedade no curso e que era certamente consequência dessa sociedade colonial, a profissão de modelo vivo começou a estabelecer-se no Brasil a partir da segunda metade do século XIX, ainda que tardiamente em relação ao modelo francês.  Lá, apesar das novidades do sistema didático iniciadas por Viollet Le Duc, o curso continuava em sua mesma forma em relação aos modelos, o que deixava cada vez mais evidente o desgaste dos profissionais, sem mencionar toda a questão moral que isso envolvia. A partir de 1880, o curso passou a admitir modelos femininos – um pano pra manga que nos garante uma reflexão próxima.

Referências

  • DIAS, Elaine. Um breve percurso pela história do Modelo Vivo no Século XIX – Princípios do método, a importância de Viollet Le Duc e o uso da fotografia. 19&20, Rio de Janeiro, v. II, n. 4, out 2007. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/ensino_artistico/ed_mv.htm>

 

Carol Zanelatto

Carol Zanelatto

é estudante de Design de Produto da UFPR e mantém um caso de amor entre tantas outras coisas, com você, o mundo, a arte e a CORDe Curitiba

Conteúdo relacionado

Comentários

Os comentários estão encerrados.