Do tempo que passa como caminhar sem chão

Por Marcos Beccari

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Hoje há um poema que, no mundo da fixidez, significa um suplemento, recreação, um ornamento, elã, evasão, em suma, pausa e desconexão; dele se pode dizer: trata-se também aí de sentimentos determinados e singulares. E há outro poema que não pode esquecer o caráter inquieto, inconstante e fragmentário escondido na totalidade da existência; dele se poderia dizer: trata-se aqui, ainda que apenas em parte, do sentimento enquanto totalidade sobre a qual o mundo repousa como uma ilha. – R. Musil, Posfácio de Cartas a um jovem poeta (R. M. Rilke, SP, Globo, 2013, p. 122).

Ele ainda usa o mesmo par de brincos. Pensei, ao me deparar com um antigo colega de faculdade andando de mãos dadas com a filha. As crianças crescem. E o que se mantêm intactos são os gestos, iguais aos do pai. Difícil é rebobinar a fita do “agora” para organizar o tempo que passou e o que há para ser contado. Nada além de uma mesma e impertinente curiosidade, inabalável porquanto ainda leve e fugitiva: que ficção é esta que se mantém em aberto acerca do “tempo que passa”, como espécie de revelação daquilo que, para todos os efeitos, já se sabe? As respostas mais antigas reaparecem como questões novas a um olhar inaugural. “Já não sei mais olhar desse jeito”, você me diz, como se houvesse algo a ser recuperado. Nunca há. O que nos resta é redescobrir o que sempre soubemos nesse tempo em que as crianças não pararam de crescer.

Talvez seja mesmo proibido lançar mão da linguagem prosaica ao invés da conceitual num discurso que se pretende filosófico, como se o saber humano fosse obrigado a recuar para o interior dos limites da história, da ciência, da lógica etc. Tudo bem, que se apresentem as liminares jurídicas. A recusa da imagem é paradigmática na tradição do pensamento ocidental, de sorte que prevalece religiosamente a oposição entre nosso esforço de inteligibilidade e a contundência volátil da imagem, ainda fortemente veiculada à irracionalidade. De um lado o verdadeiro, de outro o imediato. Porque é no isolamento do objeto e na cisão do sujeito – que passa a ser dois, o que pensa e o que é pensado – que se processa o cogito cartesiano.

Mesmo com a melhor das boas intenções, todavia, a razão humana não encontra em si nada mais do que expressões provisórias de ficções imaginárias que nos guiam no “tempo que passa” em sua revelação infinita, isto é, na compreensão de uma existência sempre em vias de realização e sempre prestes a sumir por definitivo. Pensar para existir, ou pensar que se existe só pensando, não passa de sentido acrescentado às coisas que antes de tudo são narradas, que se reorganizam na imaginação e que, justamente por isso, nos aparecem como factíveis e inalteráveis. Em suma, mera tentativa redundante de povoar uma existência provisoriamente habitada, já em vias de ser esquecida e cuja duração, percebida ou despercebida, não cessa de esgotar-se.

I. Narrador que somente existe por meio da história que narra.

Sabe-se que Proust teria escrito o primeiro e o último volume de Em busca do tempo perdido – respectivamente No caminho de Swann e O tempo redescoberto – num mesmo período de tempo e só depois teria completado o enorme intervalo entre eles. A comparação feita, com frequência, à construção de uma grande catedral não se deve, pois, apenas ao uso exemplar das belles-lettres na construção de vitrais narrativos cuidadosamente erigidos e detalhados. Trata-se de uma “catedral” como metáfora narrativa: entre o final escrito antecipadamente e aquilo que o autor estabelece como início, há uma espécie de futuro-anterior cuja projeção de realização aparece simultaneamente, ainda que sempre de maneira diferente, em todo o enredo.

Inserida no período inaugural do chamado romance moderno, a obra de Proust se constitui de um extenso relato das relações que o narrador, em primeira pessoa do singular, estabelece com sua própria história, conjugadas a uma série de reflexões subjetivas e cambiantes que, por sua vez, instauram dois focos principais que orientam toda a história: o tempo perdido e o tempo redescoberto. A consciência da passagem do tempo é relatada por meio de uma suspensão da própria duração, de modo a compreender o movimento incessante de “tempo perdido” que nos constitui. Por conseguinte, entretanto, este mesmo esforço de observar vestígios acaba por revelar aspectos diferentes, portanto “redescobertos”, daquele tempo considerado perdido. Não é novidade, diga-se, elaborar analogias diversas entre a imagem literária proustiana e o pensamento filosófico de Bergson, como em sua abordagem acerca da sucessão do tempo:

É uma sucessão de estados em que cada um anuncia aquele que o segue e contém o que o precedeu. A bem dizer, eles só se constituem estados múltiplos quando, uma vez tendo-os ultrapassado, eu me volto para observar-lhes os rastros. […] podemos, sem dúvida, por um esforço de imaginação, solidificar a duração uma vez escoada, dividi-la então em pedaços que se justapõem e contar esses pedaços, mas que esta operação se realiza sobre a lembrança fixada da duração, sobre o traço imóvel que a mobilidade da duração deixa atrás de si, não sobre a duração mesma. – Henri Bergson, Introdução à metafísica (Coleção “Os pensadores”, São Paulo, Abril Cultural, 1979, p. 17-19).

Contudo, o possível diálogo conceitual entre Proust e Bergson parece levantar mais suspeitas do que provas incisivas, sobretudo quando se coloca em jogo as premissas metafísicas deste último autor – quanto a isso, indico a extensa análise feita por Paul Ricoeur no segundo tomo de seu Tempo e narrativa, além da pesquisa de Estela Sahm registrada no livro Bergson e Proust: sobre a representação da passagem do tempo. Creio que, de modo distinto da concepção bergsoniana de tempo como pura alteridade de si mesmo, a narrativa proustiana alude uma noção de tempo que, uma vez relatado, funciona como uma espécie de filtro imanente de possibilidades que não se deixam ver pela mera sucessão das coisas vistas. Os episódios são trazidos de acordo com as associações que a imaginação estabelece entre as diversas experiências vividas em diferentes momentos, podendo-se alternar a todo instante a localização de tais experiências numa mesma (e pressuposta) sucessão temporal linear. Isso não implica, para o narrador, a inexistência de uma realidade objetiva, apenas a constatação de uma posição sempre móvel a partir da qual ele percebe “o mundo” onde se encontra. Assim, visitar um mesmo lugar, rever uma mesma pessoa ou ouvir novamente uma mesma música serão sempre experiências singulares cujos aspectos nunca coincidem plenamente, ainda que a memória possibilite o reconhecimento.

É como se pudéssemos acompanhar lentamente cada momento como uma tela em branco que recebe, ao longo das minuciosas descrições, as manchas de tinta que vão compor figura e fundo, primeiro e segundo plano – mas com um ponto de vista em permanente deslocamento, apreendendo parcelas sempre diferentes de uma mesma cena. Não é o caso, entretanto, de uma representação espacial do tempo como pura entidade abstrata, na qual se inserem momentos vividos a partir de um “preenchimento” espacial. A própria geografia descrita é descontínua, com lugares desconectados entre si, como um mapa fragmentado feito de espaços recortados e realocados e uma grande área vazia, ainda não preenchida. Sob um viés filosófico, trata-se da ideia da impossibilidade de uma realidade como sendo totalidade e permanência, sugerindo, ao invés disso, uma espécie de fluxo descontínuo, desde sempre aberto e indeterminável.

Claro que todo acontecimento vivido é finito, encerrado na esfera do passado. Mas o viver em si, bem como o acontecimento lembrado – “não há percepção que não esteja impregnada de lembranças”, atestava Bergson –, é sem limites, porque interfere na compreensão de tudo o que veio antes e depois. Retomando os focos reflexivos da obra proustiana, a ideia de um “tempo perdido” refere-se à impossibilidade de qualquer experiência ser revivida tal e qual, dado que toda experiência se conjuga de maneira única, irrecuperável, jamais idêntica. Disso decorre uma “busca” (no original em francês “recherche”) por um tempo que, embora nunca reencontrado, tem a capacidade de se reinserir no presente por meio de um novo ponto de vista, revelando assim aspectos antes não percebidos. Tal desconfiança que está presente desde o início do romance proustiano confirma-se no desfecho, onde vislumbramos a reconstrução, por parte do narrador, de seu passado através da escrita fragmentada da história que acabamos de ler.

[…] metáfora e reconhecimento tornam explícita a relação por meio da qual a impressão redescoberta é ela mesma construída, a relação entre vida e literatura. […] Esta é a riqueza de sentidos do tempo redescoberto, ou ainda da operação de redescobrir o tempo perdido. […] De fato, tanto quanto a vida representa o caminho do tempo perdido, e a literatura o caminho do extratemporal, podemos dizer que o tempo redescoberto expressa a recuperação do tempo perdido no plano extratemporal, do mesmo modo que a impressão recuperada expressa a retomada da vida na obra de arte. – Paul Ricoeur, Time and Narrative, v. II (The University of Chicago Press, 1985, p. 151).

II. Retorno que só pode ser eterno caso não seja do mesmo.

Existe algo a se pensar que já não tenha sido pensado antes? Experiência possível que já não tenha sido vivida? Seria legítimo dizer que a experiência é uma coisa e o pensamento que a interpreta e a expressa outra coisa? Poderia uma expressão tornar diferente aquilo que ela quer expressar? “É preciso acreditar”, dizem aqueles para quem uma ficção é mais real que todas as outras. Talvez a melhor crença ainda seja a do acaso, antes que as coisas nos pareçam falsas. Não tanto o acaso do artifício, este traço certeiro sem intenção, que não se deixa repetir nem se tentássemos mil vezes. Mas o acaso da repetição mesma, da expressão que se repete para dizer outra coisa, do pensamento que retorna como novo, da diferença que só nasce da repetição.

Para Nietzsche, o clássico problema de como saber se o sentido das palavras se refere a objetos da realidade foi sempre um falso problema. Afinal, o sentido de uma expressão é a maneira como ela se refere à realidade, de modo que o sentido da realidade em si é sua própria aparência. Tendemos a esquecer que toda estrutura de significado é um artifício, invenção arbitrária, quando começamos fixá-la em conceitos como pontos de ancoragem para nossas ações. É desse modo que a língua articula-se como discurso, ultrapassa-se enquanto sistema e realiza-se como evento.

A perspectiva sempre relativa e fugaz do narrador de Em busca do tempo perdido, neste sentido, diz mais respeito a uma nitidez em relação aos artifícios por meio dos quais compreendemos a realidade e menos a uma limitação confusa onde se confrontam imagens emaranhadas. Os conceitos formulados como instrumentos de análise do real tendem a uma fixação não apenas do real, mas também da linguagem que lhe atribui significado, correndo o risco de trocar (“fixar”) um pela outra. Neste ínterim, o protagonista proustiano parece adotar uma postura nietzschiana segundo a qual o mundo, não importa o quanto tentamos adequá-lo a uma ideia, permanece não fixável. Por conseguinte, o passado nunca pode ser compreendido em seus “próprios termos”, uma vez que a experiência presente de um indivíduo ou de uma sociedade reorganiza a todo instante o significado do passado. Noutras palavras, a “História” (ou a Verdade, a Natureza, o Eu etc.) não passa de artifício que reorganiza a estrutura intelectual que a compreende.

Com isso quero propor que a chave para a compreensão filosófica do “tempo redescoberto” de Proust reside naquilo que muitos autores contemporâneos julgam ser um dos principais eixos do pensamento nietzschiano: o tema do eterno retorno. As interpretações são variadas e muitas vezes contraditórias: retorno de coisa alguma, segundo Klossowski, retorno da diferença inerente a toda coisa, segundo Deleuze, retorno do Mesmo e por conseguinte como atestado de um ser eterno transcendendo todo “ente”, segundo Heidegger. Não bastasse tal divergência, somos levados a questionar por que este tema, sendo tão importante, ocupa um lugar materialmente tão restrito no conjunto da obra de Nietzsche – tudo indica que a obra que estava em vias de ser escrita, pouco antes de ele enlouquecer em 1889, avançaria bastante na conceituação do eterno retorno. Seja como for, Nietzsche deixou registrado em diversos trechos dispersos no conjunto de sua obra a grande importância que ele atribui a esse pensamento – sem nunca, no entanto, precisar sua natureza exata. Creio que a questão fundamental a ser feita é: eterno retorno significa um ciclo em que tudo retorna, em que uma mesma coisa retorna ou em que tudo retorna a uma mesma coisa? Questão fundamental justamente porque não acerta em nada.

Consideremos inicialmente dois tópicos da terceira parte de Assim falou Zaratustra: “Da visão e do enigma” e “O convalescente”. Em momento algum é o próprio Zaratustra quem enuncia a doutrina circular do eterno retorno; num caso, é o anão, este “espírito da gravidade”, no outro, são a águia e a serpente, os animais de Zaratustra. “Tudo que é reto mente”, murmurou o anão, “toda a verdade é curva, o próprio tempo é um círculo”. Em outro momento, os animais disseram: “para os que pensam como nós as próprias coisas dançam, tudo vai, tudo volta, tudo morre, tudo refloresce, tudo se separa, tudo volta a se encontrar” e assim por diante. Com o anão, Zaratustra ficou zangado e adoeceu (provocando-lhe a insuportável visão do pastor em cuja boca entrou uma serpente); com os animais, fingiu que estava dormindo (recuperando-se do pesadelo). Doente, sentia nojo ao constatar que “eternamente retorna o homem de que você está cansado, o homem pequeno”. Depois, ao se recuperar, Zaratustra compreendeu o que não é o eterno retorno: não é um ciclo, não supõe o mesmo, o igual, o idêntico, não é um retorno de tudo, um retorno do mesmo, nem um retorno ao mesmo. Vejamos o início da segunda parte de “A visão e o enigma”:

“Alto lá, anão”, falei. “Ou você ou eu! Mas eu sou o mais forte dos dois. Você não conhece meu pensamento abissal. Esse você não poderia suportar”. Então aconteceu algo que me aliviou, pois o anão, curioso como era, pulou de minhas costas ao solo. E se foi acocorar em uma pedra à minha frente. Mas tínhamos parado justamente diante de um portal. “Olha esse portal, anão”, prossegui; “Ele tem duas faces. Dois caminhos se juntam aqui; ninguém ainda os percorreu até o fim. Esse longo caminho que vai para trás dura uma eternidade. E aquele longo caminho que vai para a frente é outra eternidade. Esses caminhos se contradizem; encontram-se de frente; e é aqui nesse portal que eles se juntam. O nome do portal está escrito no alto: instante. Mas se alguém seguisse por um desses caminhos sem parar e cada vez mais longe, você pensa, anão, que eles sempre se iriam opor?”. […] “Olha esse instante. A partir desse portal chamado instante um longo, eterno caminho se estende para trás: há uma eternidade às nossas costas. Tudo o que pode caminhar não deve necessariamente ter uma vez percorrido esse caminho? Tudo o que pode, entre as coisas, acontecer não deve uma vez já ter acontecido, passado, transcorrido? E se tudo já existiu, que acha você, anão, desse instante? Esse portal também não deve já ter existido? E todas as coisas não estão tão firmemente encadeadas que esse momento arrasta consigo todas as coisas futuras? Portanto – também a si mesmo? Porque tudo aquilo que pode caminhar deverá ainda percorrer uma vez também este longo caminho que leva para a frente!”. – Nietzsche, Assim Falou Zaratustra (São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p. 148-150).

A longa argumentação acima consiste no seguinte: se o passado fosse infinito ou eterno, o tempo que passa teria atingido um estado de equilíbrio (circular, fechado) pelo retorno do mesmo, mas o instante atual prova que esse estado não foi atingido – bastaria um único instante “a mais” ao tempo circular para que não pudesse mais haver tempo circular. O instante atual é um instante que passa e só pode passar porque é ao mesmo tempo presente, passado e futuro, sendo tal simultaneidade aquilo que funda ou determina a relação do instante atual com os outros instantes. A crítica de Zaratustra, assim, incide sobre a ideia “circular” do tempo proferida pelo anão, ideia esta que está em continuidade com a concepção física e astronômica dos antigos.

O próprio platonismo em geral propõe um modo de organização do caos a partir no modelo da Ideia, que lhe impõe o mesmo e o semelhante. O eterno retorno, neste sentido platônico, é o caos dominado, monocentrado, determinado a copiar o eterno. Ele instaura a cópia na imagem, então subordinada à semelhança. Enfim, estamos ainda bem longe daquilo que Nietzsche considerou como sua ideia mais vertiginosa. O que talvez reste aqui é tão somente uma pista preliminar dessa ideia: a noção de “instante” não deve ser pensada como tempo “presente” no sentido estrito, mas como um tempo que está sempre passando e que, portanto, não pode começar nem acabar num mesmo ponto. Prossigamos então para outra obra nietzschiana, a Gaia ciência:

E se um dia ou uma noite um demônio se esgueirasse em tua mais solitária solidão e te dissesse: “Esta vida, assim como tu vives agora e como a viveste, terás de vivê-la ainda uma vez e ainda inúmeras vezes; e não haverá nela nada de novo, cada dor e cada prazer e cada pensamento e suspiro e tudo o que há de te retornar, e tudo na mesma ordem e sequência – e do mesmo modo esta aranha e este luar entre as árvores, e do mesmo modo este instante e eu próprio. A eterna ampulheta da existência será sempre virada outra vez – e tu com ela, poeirinha da poeira!” – Não te lançarias ao chão e rangerias os dentes e amaldiçoarias o demônio que te falasses assim? Ou viveste alguma vez um instante descomunal, em que lhe responderias: “Tu és um deus e nunca ouvi nada mais divino!”. Se esse pensamento adquirisse poder sobre ti, assim como tu é, ele te transformaria e talvez te triturasse; a pergunta diante de tudo e de cada coisa: “Quero isto ainda uma vez e inúmeras vezes?” pesaria como o mais pesado dos pesos sobre o teu agir! Ou, então, como terias de ficar de bem contigo e mesmo com a vida, para não desejar nada mais do que essa última, eterna confirmação e chancela? – Nietzsche, Gaia Ciência, § 341 (Obras incompletas, col. Os pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 2003, p. 208-209).

Este trecho é considerado o primeiro que traz explicitamente a concepção nietzschiana de eterno retorno. Curioso é que não se trata de uma tese acerca da verdade das coisas, mas de mera suposição, uma ficção (“se um demônio te dissesse…”) que incide sobre a disposição afetiva que nutrimos pela vida. Estaríamos aptos a aprová-la até aqui e amá-la como tal? Ou ela seria o mais pesado dos pesos, a maior das torturas? O que avalia a ideia de retorno é a intensidade respectiva de alegria e de tristeza, cuja “eterna confirmação e chancela” ela autoriza em definitivo. Mas o ponto ao qual devemos atentar é que não foi arbitrária a escolha da metáfora ficcional como descrição clara do eterno retorno: o que exatamente retorna – ou melhor, retornaria, pois sempre se tratou, convém reiterar, de uma ficção – é justamente este mundo que já está aqui. Trata-se de uma repetição precisa que nada tem a ver com um círculo vicioso: fazer voltar o que nunca deixou de estar presente. A maneira como a hipótese é proferida pelo demônio exprime essa intenção de “revelar” a coincidência do agora com o que sempre houve e com o que ainda há por vir.

Diante dessa provocação ficcional, ao menos por um instante, não mais pensamos no agora como oposto ao que há por vir, ou no tempo perdido como oposto ao tempo em aberto, nem na necessidade como oposta ao acaso, ou ainda, de modo geral, na identidade como oposta à diferença. Ao passo que a filosofia representacional, de Platão à Kant, submetia a diferença à identidade, a radicalidade nietzschiana consiste em dizer que tudo retorna justamente porque nada permanece o mesmo. O que retorna é o diverso, o múltiplo, o diferente. Não é o “mesmo” que retorna, é o retornar que é o mesmo do que há de retornar. Ainda vemos, portanto, uma noção de identidade, só que não mais como sendo a natureza daquilo que retorna, e sim o fato de retornar para o que difere – a identidade é o retornar em si, que faz prevalecer a diferença.

Evidentemente o eterno retorno não deve ser entendido como uma doutrina cosmológica e física, beirando a metafísica, mas sim como um pensamento ético e ontológico, ou mesmo como um exercício prático de viver. Afinal, sua interpretação é indissociável das noções nietzschianas de vontade de potência e amor fati, ambas relacionadas a uma afirmação incondicional da vida – é assim que o eterno retorno é definido em Ecce homo, como expressão da “paixão do sim por excelência”. Do mesmo modo, o aforismo 56 de Para além do bem e do mal (Cia. das Letras, 1992, p. 59) descreve a vontade de potência como querer fazer retornar o próprio querer em relação ao que já temos e sentimos: “[o] mais exuberante, mais vivo e mais afirmador do mundo, que não só aprendeu a se resignar e suportar tudo o que existiu e é, mas deseja tê-lo novamente, tal como existiu e é, por toda a eternidade, gritando incessantemente ‘da capo’ [do início]”.

A orientação ética aqui é clara: aderir ao que é, sem reserva alguma nem ressalva possível ou desejável. Mesmo diante do caráter sofredor e doloroso da vida, Nietzsche enaltece a coragem necessária para afirmá-la como ela é. A paixão ao destino, ao presente, ao que é, tal como é (amor fati), seria, pois, a conduta ética intrínseca a uma concepção trágica da existência. Enquanto o imperativo categórico kantiano diz “Age de modo que a máxima de sua vontade possa sempre valer ao mesmo tempo como princípio de uma legislação universal” (Crítica da razão prática, § 7), a regra prática nietzschiana é bem traduzida por Deleuze em seu Nietzsche e a filosofia: “O que você quiser, queira-o de tal modo que também queira o seu eterno retorno”. Por mais que uma leitura apressada possa não notar, há uma diferença clara entre os dois enunciados: no primeiro, a vontade se faz valer como uma ordem, e no segundo, por meio de uma pergunta – “quero revivê-lo um número infinito de vezes?”, até porque de todo modo o reviverá.

Por isso Deleuze atribui ao pensamento nietzschiano do retorno um caráter fundamentalmente seletivo: elimina-se não o que não se adequa à nossa vontade, mas a vontade que não se adequa ao mundo, incluindo as meias-vontades, os “semiquereres”, a fim de estabelecer ou restabelecer a vontade como criadora de potência. O problema de tal consideração seletiva de Deleuze, a meu ver, é quando desemboca numa ideia de progressão diferencial em meio à qual toda negação seria dissolvida. Deleuze chega a declarar, por exemplo, que a vontade de nada (niilismo elevado à enésima potência) poderia funcionar como prova decisiva a partir da qual toda potência poderia tanto se anular quanto se restaurar plenamente. Penso que o eterno retorno, tal como Nietzsche sempre o pensara, faz voltar indistintamente todas as coisas, tanto os prazeres como os sofrimentos. E mesmo em sua descrição acerca dos sucessivos estágios do niilismo – negativo, que nega o mundo em nome de valores superiores; reativo, que coloca valores reativos no lugar dos valores divinos; e o “último homem”, que prefere anular-se passivamente –, não reconheço nenhuma brecha à afirmação do eterno retorno, muito menos à vontade criadora de potência.

Muito diferente seria um pessimismo, que não necessariamente implica niilismo, levando às últimas consequências, como vemos em Emil Cioran, para quem toda constatação da insignificância da vida resulta paradoxalmente em maior vontade de viver – conferir o ótimo artigo de Rogério de Almeida acerca disso. Pertinente lembrar que, para Nietzsche, o homem mais forte é aquele que consegue não se importar com as “pragas” que lhe atormentam – em segundo lugar os que tentam matar as pragas e, por último, os que se vingam imaginariamente delas taxando-as de más. Não significa dizer que as mulheres, por exemplo, não deveriam se importar com o machismo; pelo contrário, significa dizer que a mulher pode ser muito maior que isso, sobretudo pela via afirmativa que deseja fazer retornar a diferença. Neste ponto, a dimensão ética passa a ser ontológica, e Deleuze é particularmente incisivo a esse respeito:

Nietzsche não suprime o conceito de ser. Propõe uma nova concepção de ser. A afirmação é ser. O ser não é o objeto da afirmação […] A afirmação só tem a si mesma como objeto. A afirmação como objeto da afirmação: isto é o ser. […] É por isso que a afirmação em toda sua potência é dupla: afirma-se a afirmação. É a afirmação primeira (o devir) que é ser, mas apenas como objeto da segunda afirmação. As duas afirmações constituem a potência de afirmar em seu conjunto. – Deleuze, Nietzsche e a filosofia (Rio de Janeiro, Editora Rio, 1976, p. 213-214).

Em suma: no eterno retorno, a repetição é a potência da diferença, por meio da qual a afirmação se manifesta e se desenvolve como criadora. Nunca se tratou do eterno retorno do Mesmo (ele destrói as identidades), uma vez que o retornar eterno é o único Mesmo, ainda que o seja pelo que difere em si – intensidades, forças e devires. Na medida em que ele se dá pela diferença, pela vontade de potência, o eterno retorno não é qualitativo nem quantitativo, mas intensivo. Não é apenas numa forma pensamento que reside o eterno retorno, mas num modo de ser: o de aprovar uma existência fadada a desaparecer. Por sua vez, a vontade de potência é a sensibilidade extrema em relação a tal existência, amor incondicional ao destino de viver para morrer. De um modo ou de outro, através da cadeia ininterrupta de diferenças e intensidades, somos conduzidos violentamente do limite da sensibilidade ao limite do pensamento, deparando-nos eventualmente com a possibilidade de afirmação que só pode ser pensada se não prescindir de ser sentida.

III. Narrativa que somente existe enquanto for narrada.

Meu ponto é que a busca proustiana pelo “tempo perdido” está intrinsecamente ligada à concepção nietzschiana de eterno retorno, sendo o “tempo redescoberto” nada mais que sua confirmação e afirmação, ligando-se então à vontade de potência em sua força criadora. O principal tema de Em busca do tempo perdido é a vicissitude de uma dimensão temporal que não é ilimitada nem progressiva, aludindo um modo especial de lidar com tal dimensão. Sob este prisma, o eterno retorno aponta para uma genealogia que considera o homem, sua história e sua cultura não como uma experiência totalizante, unívoca e linear, mas plural e ao mesmo tempo “idiota” – no sentido etimológico do termo, ou seja, fugaz, singular e dado ao acaso. Tanto a resignação, por exemplo, perante a impossibilidade efetiva de melhoria, quanto o entusiasmo com a perspectiva de um mundo melhor nunca foram novidades. Superação, desistência, salvação e condenação não passam de coordenadas fixas para o que nunca é permanente.

Mas se não é permanente, onde fica o “eterno” afinal? Há aqui, mais uma vez, o falso indício de um paradoxo aparente: de um lado, Nietzsche denuncia a vontade de eternização como essencialmente reativa, como expressão de uma insatisfação acerca da existência finita; de outro, o desejo de eternidade é louvado por Nietzsche a partir do momento em que se trata do eterno retorno. O próprio autor distingue duas formas diferentes e opostas do desejo de eternidade no aforismo 370 da Gaia ciência: “A vontade de eternizar requer […] uma dupla interpretação. Pode, em primeiro lugar, provir de gratidão e amor. […] Mas pode ser também aquela tirânica vontade de alguém que sofre gravemente, de um combatente, de um torturado, que gostaria ainda de moldar o mais pessoal, mais único, mais estreito, propriamente a idiossincrasia de seu sofrimento, em lei e coação obrigatória”. Ou seja, pode ser tanto sintoma de falta quanto sinal de plenitude. No caso do desejo de eternidade de que se vale a vontade de potência, o aspecto “eterno” afeta menos a natureza das coisas do que a natureza do desejo do qual ele é objeto.

A afirmação do eterno retorno, pois, tem em vista não uma permanência no mundo, mas uma insistência na vontade de viver. Mas como sustentar essa vontade? Que insistência é esta sobre aquilo que não se escolhe? Há uma letra da banda O Rappa que, a meu ver, conjuga uma narrativa que é recorrente tanto nos relatos míticos (êxodo, dilúvio, queda) quanto na realidade de muitos brasileiros: “As ondas de vaidade inundaram os vilarejos, e minha casa se foi como fome em banquete. Então sentei sobre as ruínas. E as dores como o ferro, a brasa e a pele ardiam como o fogo dos novos tempos. E regaram as flores do deserto! E regaram as flores com chuva de insetos!”. Nada mais redundante neste país do que famílias serem despejadas sem aviso prévio, tendo suas posses todas roubadas ou “confiscadas”, e comunidades inteiras se acumulando no limiar da sobrevivência enquanto uma parcela ínfima da população não cessa de enriquecer. Ninguém escolheu viver assim, mas somos convidados a escolher qual é o significado disso tudo.

Uma vez que o significado não emana do real, mas é colado a ele por meio de uma composição imaginária, nossas narrativas e produções simbólicas, incluindo a própria filosofia, são rearranjos de imagens que organizam um conhecimento que ora busca apreender o real ora se esquivar dele. Um arranjo frequente é estabelecer uma razão incontestável, como a luta de classes ou a justiça social, razão que necessariamente torna-se irreconciliável com determinadas ocasiões. Outra forma é reconhecer que não é o real que eventualmente não faz sentido ou que “ainda” não se adequou a uma razão superior, mas é a própria noção de sentido/razão que é inadequada ao real. Embora insignificante, o mundo não carece de significado, quem carece disso somos nós.

“Não há nada novo debaixo do sol”, enuncia Eclesiastes, cuja questão se repercute por todo o Antigo Testamento – acima de tudo no livro de Jó, onde o escândalo e o enigma do “justo sofredor” desviam a atenção do destino salvacionista dos povos para o sofrimento imerecido dos indivíduos, ao qual nenhuma teodiceia responde. O que vemos aqui é, mais uma vez, a retomada da pergunta nietzschiana: estaríamos aptos a aprovar este real em sua plenitude, tal como um grande salto no escuro (nos termos de Kierkegaard), ou somente conseguiríamos impor a idiossincrasia do sofrimento como “lei e coação obrigatória”? Ou ainda, prosseguindo com a letra da música mencionada há pouco, cujo título é O salto: “Mas se você ver, em seu filho, uma face sua e retinas de sorte, e um punhal reinar como o brilho do sol, o que farias tu? Se espatifaria ou viveria o espírito santo?”. Temos aqui uma situação igualmente mítica, a de um filho voltando-se contra o pai, talvez por sobrevivência, talvez por vingança. A música se encerra com uma espécie de testamento suicida: “Aos jornais eu deixo meu sangue como capital, e às famílias um punhal, à corte eu deixo um sinal!”. O sentido, portanto, é o da idiossincrasia do sofrimento.

É num sentido totalmente oposto que Dom Quixote (Cervantes), assim como o protagonista de Proust (ou ainda como Zaratustra, Brás Cubas etc.), procurou “acomodar” a realidade à sua percepção parcial e insistente de cada ocasião, partindo desde o início do pressuposto de que o mundo é “resistente” à atribuição de um sentido que seja a ele acrescentado. Afinal, mesmo na pior das ocasiões, nada impede que continuemos a revestir o mundo de significados diversos – uma condição se não necessária ou menos inevitável para compreendê-lo. O difícil é não perder de vista certa desnaturalização que nos impede de substituir forçosamente a insignificância singular do real por outra coisa. É apenas no caso dessa troca forçada, como o desfecho da música supracitada, que o eterno retorno efetivamente assume a insígnia do “mais pesado dos pesos”: o que quer que se diga, já terá sido dito antes (redundância idiossincrática), o que quer que faça, já sido feito (repetição do mesmo). A única escolha que resta neste eterno retorno do mesmo é entre o mesmo e o pior, e um pior que se confundirá, aliás, rapidamente com o mesmo.

Uma conspiração, por exemplo, renasce das cinzas ao mesmo tempo em que cai por terra: aquele que confessa fingir pode muito bem estar fingindo quanto ao que diz. Ou ainda, se acordamos novamente vivos, pode ser para servir de exemplo de existência ou, pelo contrário, para servir de exceção de uma não-existência que nos deixou mais uma vez escapar. O que seria isso, uma não-existência? Talvez nada além de um exemplo qualquer de existência prestes a ser esquecido. Des-istência ao acaso. E aqui novamente a linguagem prosaica talvez nos localize numa situação mais palpável: a insônia da noite anterior, ideias tão frescas e tão potentes que nunca sobrevivem à manhã seguinte, mil planos que se desdobram em nostalgia de um passado fictício, num abismo infinito que se abre entre o olhar demasiado aberto e uma brasa acesa no escuro.

Implacável repetição de um mesmo dia como já tendo vagamente ocorrido. E o receio de que, como em Synecdoche, New York, será apenas no final que o espectador descobrirá que tudo o que lhe foi mostrado como repetição de um inapreensível e onírico passado era, na verdade, a premonição daquilo o que só se realizaria aqui e agora. Captura do real cujo atalho se revela na renúncia a essa captura. O que sempre implica um risco do tipo Being John Malkovich: um ventríloquo lutando contra seu fantoche, que escapa progressivamente ao controle de seu mestre e acaba por apropriar-se da realidade deste. Por isso a estratégia do acaso, de agir como se já soubéssemos do fim, ainda que saber, de fato, do fim nunca seja útil quando se trata do fim em si.

“O destino guia quem com ele consente e arrasta quem o recusa”, célebre verso de Sêneca. Corte duplo que leva diretamente da coisa que se quer evitar à coisa que se quer obter, porque é a mesma. Afinal, o que mais há para acontecer se em cada tela nosso olhar é soterrado por uma avalanche de notícias? É o que dizem: o que realmente acontece, acontece em silêncio. E o que silencia é a interseção entre os aspectos epistemológico e ontológico, a maneira como a própria “realidade” fica presa no movimento de nosso “conhecê-la” – ou, mais precisamente, como nosso conhecer da realidade já estava incorporado à realidade mesma. Será que, se de uma hora para outra todos sumissem, você ficaria mais solitário do que quando emoldurado pela multidão? Morre-se só, sem exceção. E o que os olhos podem prever não podem, propriamente, ver.

Marcha de dias apressados pela previsibilidade de um olhar que só espera por outros dias. Mas há uma diferença entre o olhar previsível e as coisas vistas como previsíveis. A tristeza é apenas o desejo de deixar de ser triste. Não como voltar ao estado de não saber disso ainda, mas continuar já sabendo, ainda que a diferença das coisas confronte a identidade que o olhar quer enxergar. Emblemático enunciado nietzschiano de que “para viver a vida é preciso não acreditar demasiado nela” – é a vontade de viver, afirmação da diferença, que ultrapassa qualquer princípio claro, estável e incontestável do que significa a vida. Daí a premissa pós-nietzschiana segundo a qual, nos discursos e condutas sociais, não é um processo de identificação que toma o lugar de toda diferenciação, mas o contrário: um processo de constante diferenciação a partir do qual qualquer tipo de identificação torna-se possível. A um só tempo, da primazia do existir (como ação) com relação à existência (como ideia), quem se sabe existente cala-se para continuar existindo.

IV. Música que somente toca enquanto dura.

A cidade acorda com fantasmas que saem pelos bueiros e das bocas bocejantes. Olhos grudados ao chão ou no carro que freia na frente, fileiras que rezam a missa dos semáforos, vagões lotados pelo povo que mirava o fim do túnel. Ouço a orquestra de engrenagens em seus primeiros acordes, privilégio dos insones, e penso que um dia não escutarei nem mais um mínimo ruído. Porto o guarda-chuva feito arma e me lanço ao trabalho. Por aqui a chuva não é tão democrática quanto o cheiro de café e pão fresco que preenche todo o ar. Em meio aos gestos apressados, qualquer fingimento é melhor que as convicções desgastadas. Adormecer novamente os demônios e resolver logo as pequenas coisas, até porque as grandes continuarão encalhadas nos livros. Entregar-se enfim ao dia com a docilidade do sorriso alucinado da moça-do-café.

Não vamos falar sobre isso, até porque ninguém aqui está falando nada; na melhor das hipóteses temos dois olhos que percorrem mecanicamente as letras. Agora penso em algo aqui, e daqui a pouco acrescento outro pensamento ali, e logo acolá, sem que exista relação alguma entre esses pensamentos. Disciplinadamente ao acaso, a tarefa de ler/escrever deve ser como a dentista nos ensinou a escovar os dentes: devagar, girando e voltando. Terminar apenas quando a mão cansar. O acaso é o que faz com que aconteça o que aconteceu e o que está para acontecer, ainda que não haja razão, conhecida ou desconhecida, para o acaso. Ele é o que apenas acontece.

Em dezembro de 2001, por exemplo, os argentinos ocuparam as ruas de Buenos Aires para protestar contra o governo e, especialmente, contra Domingo Cavallo, o ministro da Economia. Quando a multidão se reuniu em torno do prédio do Ministério, ameaçando invadi-lo, Cavallo fugiu usando uma máscara dele mesmo, máscara esta que o povo usava para zombar dele. Uma vez que o mundo aparente é o único mundo que existe, qualquer pessoa é a melhor máscara de si mesma. O que se encontra na tautologia, na repetição do mesmo, é o acaso que nunca significou nada além disso: não a diferença entre uma coisa e outra, mas a diferença de uma coisa em relação a ela mesma. Conspiração é pensar em John Malkovich entrando em sua própria mente. Não existe realidade subjacente por detrás aparências, algo a ser visto por trás das palavras, das imagens, dos gestos, algo anterior ao que sequer foi pensado. O que há são aparências de aparências, repetição da repetição, traduções de traduções etc.

Aquela moça-do-café que só não pede a conta porque morre de preguiça de fazer café em casa. As coisas não apenas parecem ser aquilo que não são, como também podem parecer apenas parecer o que não são, ocultando o fato de que são de fato o que parecem ser. É esta a lógica da diferença pela repetição, da não coincidência constitutiva de uma coisa consigo mesma: ser sincero ainda é a forma mais eficaz de mentir. Ou ainda: cultivar os inimigos para não descrer de todo o resto. Quando temos a mais sincera intenção de explicar o que quer que seja e procuramos a “expressão certa”, não apenas não encontramos uma expressão tão clara quanto nossa intenção, como também pode se impor uma expressão que muda de forma considerável a própria intenção de explicar. Mão pesada esta a do “eu”, que só se faz notar enquanto não tiver sido buscado.

Destarte as relações diferenciais são a chave para a compreensão do acaso, até porque a estrutura diferencial de toda compreensão é resultado nunca anterior à realização dessas relações. Se cometi um erro de digitação, foi porque não revisei o texto. Se você continua lendo é porque ainda espera por um desfecho. Se a moça-do-café continua sorrindo é por acreditar que qualquer pessoa serve quando se trata de apenas sorrir. Mas logo vem o acaso a cochichar em nosso ouvido: pode ser que não! E o que faz as coisas acontecerem, cada qual a seu modo singular, é justamente a multiplicidade sempre “em aberto” de suas possibilidades. Em torno de cada aqui gravita a esfera do ali. O centro está em toda parte e o perímetro em lugar nenhum – deve ter sido Pascal quem disse isso. Quando olho de trás para frente, meu passado parece uma sucessão ímpar de encadeamentos, como se houvesse algum propósito que me levasse a estar escrevendo isso agora. Mas se eu pudesse olhar de frente para trás, do ponto de vista do ainda não acontecido (como se isso fosse possível), talvez veria uma sucessão de erros, detalhes nunca percebidos, sem haver o menor resquício de sentido no rumo que as coisas tomaram.

Quero quer que é apenas este segundo tipo de retorno que o acaso eterniza, ainda que pela ficção, mesmo que a nível de potência. O que já existe veio a ser da mesma forma que poderia não ter vindo. Podemos descobrir em tudo que vivemos uma grande parcela não vivida, desconhecida, coisas que aconteceram como se não tivessem acontecido. E continuar às cegas, sem cura possível a não ser a do “tempo redescoberto”, esta reversibilidade pelo retorno irreversível. Não contra o tempo ou sem contar o tempo, mas contando ao tempo. Quem sabe o preço mais alto não seja o de repetir os gestos de um povo cujos deuses há muito se suicidaram? Esta é uma questão que deverá ser redefinida de acordo com o espaçamento e o número de caracteres a serem ainda enumerados. Antes será preciso passar no mercado, este muro ecumênico das lamentações.

Mas, para voltar a mim, pensava mais modestamente em meu livro, e seria inexato que me preocupavam os que o leriam, os meus leitores. Porque, como já demonstrei, não seriam meus leitores, mas leitores de si mesmos, não passando de uma espécie de vidro de aumento, como os que ofereciam a um freguês o dono da loja de instrumentos ópticos em Combray, o livro graças ao qual eu lhes forneceria meios de se lerem. – Marcel Proust, O tempo redescoberto (Em busca do tempo perdido, volume VII. São Paulo: Editora Globo, 2004, p. 280).

Marcos Beccari

Marcos Beccari

Doutorando em Educação na USP, designer gráfico e mestre em Design pela UFPR. Professor substituto no curso de Bacharelado em Design Gráfico na UFPR. Interessa-se por Filosofia, Psicologia e Comunicação, o que o levou a pesquisar sobre Filosofia do Design e a encarar o design como articulação simbólica na mediação ficcional que organiza o real. Além de atuar como professor e pesquisador, coordena o blog Filosofia do Design, integra o podcast AntiCast, é membro do projeto "Cinema e Educação: tela, espelho e janela" (USP-Fapesp) e colabora com outros blogs/revistas de design e comunicação.

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