Processo criativo

Por Paula Cruz

De certa forma, beira a prepotência o título do texto em questão. O que eu, uma reles mortal, posso aconselhar a todos vocês sobre criação? Devo explicar, então, que não planejo fazer um tutorial para estimular a criatividade, mas sim desmitificar o que há por volta do processo criativo.

Faz parte do senso comum nomear “criativa” a pessoa que dispõe de alguma habilidade técnica mais artística. Aquele seu primo que toca Legião Urbana no violão, o bom marceneiro, ou você mesmo, sim!, você aí, que cria umas logomarcas (sic) e sabe desenhar direitinho.

Engana-se a maioria. É preciso olhar com atenção a palavra criatividade e seus semelhantes:

criar. V. t. d. 1. Dar existência a; gerar. 2. Dar origem a; gerar, formar. 4. Dar princípio a; produzir, inventar, imaginar.

criador. Adj. 3. Inventivo, fecundo, criativo.

criatividade. Sf. 1. Qualidade de criativo.

Cada um dos significados em questão não pressupõe qualquer virtuosismo ou destreza específica. Ser criativo é imaginar ou inventar um produto, o que não é necessariamente algo palpável ou físico. Criatividade é, Eureka!, surgir com uma ideia.

Além disso, nota-se também que em todos estes conceitos contêm a ideia de novo, inédito. A obra verdadeiramente criativa traz consigo uma nova configuração para algo já conhecido, ou seja, uma solução para um problema antigo. É o caso de alguns trabalhos de design que nos fazem pensar: “Como eu não pensei nisto antes?!”. É, meu amigo, estava lá o tempo todo. Só que ninguém havia olhado para o lado certo antes.

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Tweak, o ralo de pia do futuro | Pior do que lavar uma bela panela de feijão, é lavar um ralo de pia, daqueles bem cheios de restos de comida. Pensando neste problema, dois designers israelenses criaram um ralo de plástico que, ao pressionar a borda do produto, ele se torna curvo. Assim ninguém mais tem que encostar nos restos da janta de ontem. Como eu não pensei nisso antes?!

Tweak, o ralo de pia do futuro | Pior do que lavar uma bela panela de feijão, é lavar um ralo de pia, daqueles bem cheios de restos de comida. Pensando neste problema, dois designers israelenses criaram um ralo de plástico que, ao pressionar a borda do produto, ele se torna curvo. Assim ninguém mais tem que encostar nos restos da janta de ontem. Como eu não pensei nisso antes?!

A inovação surge, na maior parte dos casos, do remanejo do conhecimento já estabelecido, porém de forma inusitada. Gutenberg, por exemplo, resolveu o problema da impressão de tipos ao ver uma prensa de uvas e vinhos. Ele conectou dois fatos distantes de forma realmente criativa: papel e letra de um lado e uvas e vinhos sendo prensados do outro.. Em parte, este é o resumo do papel do designer. Somar a + b e, de alguma forma, enxergar o fator c. 2 + 2 =5.

David Bowie tem um dos processos criativos mais fascinantes que já vi por aí. Ele usufrui de todas as mídias para criar suas músicas. Enquanto compõe, ele pinta a música. Ele desenha os sketches da capa do cd. Faz uma performance do que seria a música. Explora, explora e explora. Daí ele volta à composição e termina o arranjo.  Ele também usufrui de um software programado para ajudá-lo na criação:  Verbasizer. É um programa que randomiza frases a partir de palavras cadastradas no sistema. A partir de frases sem pé nem cabeça Bowie cria um sentido para as frases. E assim surgem contextos, músicas, álbuns. Até o aleatório é colaborativo.

Certa vez me perguntaram se o método inibe a criatividade. Discordo. É a partir do conhecimento do método – seja ele qual for – que podemos ser criativos. Quanto mais eu sei como se faz uma revista ou um logo, mas eu posso experimentar em cima disso. Ou quanto mais eu não sei, mais eu me permito a experimentação. Até não ter um método serve ao propósito de método. Tudo depende de como eu moldo minhas regras e como elas me servem.

Picasso, que é conhecido como um dos gênios da criatividade, era um sujeito altamente metódico. Pintava sem medo, às vezes com o tempo cronometrado, e seguia numa produção quase fordista em busca de só Deus sabe o quê. Reza a lenda, e comprovam os estudiosos, que algumas de suas obras constam mais de 1000 sketches (!!!). Mil estudos para apenas um quadro. Isso é insano. E lindo, científico.

Estudos de Picasso de traços de búfalo. Até nos mais simples estudos vemos uma experimentação sem medo de ser.

Estudos de Picasso de traços de búfalo. Até nos mais simples estudos vemos uma experimentação sem medo de ser.

O processo do trabalho do cientista aproxima-se do trabalho do artista. As duas profissões exploram, coletam e consideram todas as possibilidades. Ambos são exploradores do mundo. Fazem do planeta um inventário. E para isso requer muita imaginação. Sendo assim, um dos sentidos de criar é imaginar. Esta capacidade de ver além do imediato é tão rica quanto a criação em si, pois leva-nos ao pensamento divergente. O que é e o que seria se não fosse?

O que não se percebe é que, afinal de contas, somos todos exploradores do mundo. Usamos a imaginação no dia a dia quando resolvemos problemas no banco, temos que fugir de algumas ciladas urbanas e por aí vai. A criatividade não é uma musa intocável; ela está por aí. Resta a todos nós explorarmos os cantos certos.

Paula Cruz

Paula Cruz

Paula Cruz é carioca e profissional em formação de design na UFRJ. Paralelamente aos estudos, constroi projetos autorais que unem design, texto e pesquisa, tais como livretos, cartazes e contos ilustrados.

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