Morte, amor e design

Por Marcos Beccari

“O que resta a ser pensado? A própria coisa que resiste ao pensamento. Ela resiste à frente, ela sai à frente. Aquilo que resta chega lá à frente do pensamento; resta adiantado ao que chamamos de pensamento. Pois não sabemos o que é o pensamento. Não sabemos o que essa palavra quer dizer antes ou fora dessa resistência. Ela só pode ser determinada a partir do, como resultado do, que resiste e permanece assim a ser pensado. O pensamento ainda resta a ser pensado.” – Jacques Derrida (The Horror of Thinking: Critique, Theory, Philosophy. Stanford: Stanford University Press, 2007, p. 348).

Certas obrigações e imposições são entendidas como “certas” – as leis da física, as leis da vida, as leis do papai do céu. A dura e fria realidade das coisas. Na maior parte do tempo, porém, o “certo” é mais fantasioso que realista: ninguém vive com uma calculadora, um dicionário ou uma bíblia no bolso. O “lado sério” da vida não existe o tempo todo: há sempre alguma incoerência entre nossos gostos, escolhas e julgamentos. Em última análise, temos medo de coisas muito “certas”.

Gostamos de ilustradores que desenham “errado”, de escritores que deixam “pontas soltas”, de músicos que improvisam ou mesmo desafinam. Somos fascinados pelo erro (acidental ou proposital), tentamos enxergar uma beleza secreta por trás daquilo que (supostamente) não foi pensado. Claro que não é qualquer erro – precisa ser um erro único, singular, não passível de ser reproduzido. Por exemplo, o amor que sentimos por alguém não foi planejado, não foi imposto e contradiz a si mesmo em muitos sentidos. O amor é um erro único.

Em suas Obras do amor, Kierkegaard (2007) é contundente ao afirmar que o verdadeiro amor é aquele que sentimos por alguém que está morto. O filósofo nos explica que o amor “pagão” (num sentido pejorativo) é assimétrico, pois um indivíduo imperfeito ama alguém que é mais perfeito que ele – mais belo, mais sábio, mais talentoso etc. O amor “cristão”, ao contrário, seria mais simétrico porque se baseia em algo que é comum entre as pessoas.

O paradoxo é que o único fator comum a todos seria a morte. Neste sentido, amar implica enxergar a pessoa amada como se ela estivesse morta – é exatamente esse fator comum que a torna especial. O exemplo utilizado por Kierkegaard é a lenda de Don Juan: ele amava todas as mulheres, não importa se eram belas, feias, jovens ou velhas. Ou seja, Don Juan amava uma mulher morta. Por isso sempre dava errado, mas cada erro era único.

O interessante nesse paradoxo – e ignorando as ingênuas interpretações de sempre – é que o amor já começa a partir de um erro. Embora a morte seja comum a todos nós, ela é uma singularidade que não nos pertence (se você está lendo isso, você não conhece a morte). É como contemplar uma música desafinada sem compreender como ela pode ser tão bonita quanto errada. Ficamos diante de um erro irreparável, como a morte.

A questão é que, assim como a morte, os “erros únicos” são prospectivos e retrospectivos, mas nunca estão no presente. Trata-se de algo que jamais vai se repetir novamente e que, no entanto, permanece incompleto, como se não tivesse acontecido ainda. Nisso, o grande dilema é que devemos “tentar de novo” a todo instante e, ao mesmo tempo, devemos reconhecer que é sempre “tarde demais” para recomeçar.

É preciso um tipo de pensamento que tanto se volta quanto surpreende a si mesmo. Como um objeto “morto” que, por meio do design, desperta o amor de alguém. Em certo sentido, portanto, creio que design é uma curiosa forma de amor: um potencial humano de transformar erros em beleza. Significa entender que o erro é o critério do acerto (e não o contrário) e, sobretudo, que todo erro é na verdade um mal entendido.

Referência utilizada: KIERKEGAARD, S. As Obras do Amor. 2. ed. Trad. Alvaro Valls. Petrópolis: Vozes, 2007. Confira o PDF do capítulo A obra de amor que consiste em recordar uma pessoa amada já falecida.

Marcos Beccari

Marcos Beccari

Doutorando em Educação na USP, designer gráfico e mestre em Design pela UFPR. Professor substituto no curso de Bacharelado em Design Gráfico na UFPR. Interessa-se por Filosofia, Psicologia e Comunicação, o que o levou a pesquisar sobre Filosofia do Design e a encarar o design como articulação simbólica na mediação ficcional que organiza o real. Além de atuar como professor e pesquisador, coordena o blog Filosofia do Design, integra o podcast AntiCast, é membro do projeto "Cinema e Educação: tela, espelho e janela" (USP-Fapesp) e colabora com outros blogs/revistas de design e comunicação.

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Certas obrigações e imposições são entendidas como “certas” – as leis da física, as leis da vida, as leis do papai do céu. A dura e fria realidade das coisas. Na maior parte do tempo, porém, o “certo” é mais fantasioso que realista: ninguém vive com uma calculadora, um dicionário ou uma bíblia no bolso. O “lado sério” da vida não existe o tempo todo: há sempre alguma incoerência entre nossos gostos, escolhas e julgamentos. Em última análise, temos medo de coisas muito “certas”.

Gostamos de ilustradores que desenham “errado”, de escritores que deixam “pontas soltas”, de músicos que improvisam ou mesmo desafinam. Somos fascinados pelo erro (acidental ou proposital), tentamos enxergar uma beleza secreta por trás daquilo que (supostamente) não foi pensado. Claro que não é qualquer erro – precisa ser um erro único, singular, não passível de ser reproduzido. Por exemplo, o amor que sentimos por alguém não foi planejado, não foi imposto e contradiz a si mesmo em muitos sentidos. O amor é um erro único.

Em suas Obras do amor, Kierkegaard (2007) é contundente ao afirmar que o verdadeiro amor é aquele que sentimos por alguém que está morto. O filósofo nos explica que o amor “pagão” (num sentido pejorativo) é assimétrico, pois um indivíduo imperfeito ama alguém que é mais perfeito que ele – mais belo, mais sábio, mais talentoso etc. O amor “cristão”, ao contrário, seria mais simétrico porque se baseia em algo que é comum entre as pessoas.

O paradoxo é que o único fator comum a todos seria a morte. Neste sentido, amar implica enxergar a pessoa amada como se ela estivesse morta – é exatamente esse fator comum que a torna especial. O exemplo utilizado por Kierkegaard é a lenda de Don Juan: ele amava todas as mulheres, não importa se eram belas, feias, jovens ou velhas. Ou seja, Don Juan amava uma mulher morta. Por isso sempre dava errado, mas cada erro era único.

O interessante nesse paradoxo – e ignorando as ingênuas interpretações de sempre – é que o amor já começa a partir de um erro. Embora a morte seja comum a todos nós, ela é uma singularidade que não nos pertence (se você está lendo isso, você não conhece a morte). É como contemplar uma música desafinada sem compreender como ela pode ser tão bonita quanto errada. Ficamos diante de um erro irreparável, como a morte.

A questão é que, assim como a morte, os “erros únicos” são prospectivos e retrospectivos, mas nunca estão no presente. Trata-se de algo que jamais vai se repetir novamente e que, no entanto, permanece incompleto, como se não tivesse acontecido ainda. Nisso, o grande dilema é que devemos “tentar de novo” a todo instante e, ao mesmo tempo, devemos reconhecer que é sempre “tarde demais” para recomeçar.

É preciso um tipo de pensamento que tanto se volta quanto surpreende a si mesmo. Como um objeto “morto” que, por meio do design, desperta o amor de alguém. Em certo sentido, portanto, creio que design é uma curiosa forma de amor: um potencial humano de transformar erros em beleza. Significa entender que o erro é o critério do acerto (e não o contrário) e, sobretudo, que todo erro é na verdade um mal entendido.

Referência utilizada: KIERKEGAARD, S. As Obras do Amor. 2. ed. Trad. Alvaro Valls. Petrópolis: Vozes, 2007. Confira o PDF do capítulo A obra de amor que consiste em recordar uma pessoa amada já falecida.

Marcos Beccari

Marcos Beccari

Doutorando em Educação na USP, designer gráfico e mestre em Design pela UFPR. Professor substituto no curso de Bacharelado em Design Gráfico na UFPR. Interessa-se por Filosofia, Psicologia e Comunicação, o que o levou a pesquisar sobre Filosofia do Design e a encarar o design como articulação simbólica na mediação ficcional que organiza o real. Além de atuar como professor e pesquisador, coordena o blog Filosofia do Design, integra o podcast AntiCast, é membro do projeto "Cinema e Educação: tela, espelho e janela" (USP-Fapesp) e colabora com outros blogs/revistas de design e comunicação.

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