Significados múltiplos

Por Carlos Bauer

Possivelmente você já passou por uma situação como essa: algo que lembrava ser de determinado modo e, revendo, teve uma nova impressão. De duas, uma: na primeira vez não foi dada muita atenção ou a tal coisa foi percebida por um novo ponto de vista. A poesia entra em jogo nessa de uma mesma coisa poder ser percebida de várias formas.

A mensagem com valor poético não se esgota: possibilita um sem-fim de abordagens. Coelho Netto [1] explica que “seu significado poderá variar tanto quanto forem seus receptores ou, ainda, variar para um mesmo receptor, em momentos diferentes”. Isso porque as pessoas são diferentes, pensam diferente e mudam o tempo todo.

Pegando como exemplo este livro, que me seduziu pela capa: só depois de tirar da prateleira vi que era “O cheiro do ralo”, do Mutarelli (um daqueles casos “li o livro depois de ver o filme”). Na capa um padrão e uma ilustração manuais, acompanhados do título. O formato é de um sketchbook: bordas arredondadas e miolo em papel pólen. Dentro, abrem os capítulos ilustrações com a mesma pegada, vintage bico de pena, que foram retiradas de um catálogo de 1902 de uma loja departamento americana. Tanto essas ilustrações como o texto interno são impressos em um tom de verde musgo, dominante na capa. O padrão da capa é ilustrado pelo próprio Mutarelli e o projeto gráfico é creditado a Kiko Farkas e Mateus Valadares, do Máquina Estúdio (vale a pena dar uma conferida).

O caso é que de começo, o design do livro me causou certas impressões, a combinação de cores/formas/material sugeriu uma ou outra ideia. Lendo o livro, tudo fez muito sentido. Um ritmo envolvente conta a história de um cínico vendedor de uma loja de penhores perturbado com o cheiro que sai do ralo de seu estabelecimento. As ilustrações são estrategicamente selecionadas e relacionadas com o conteúdo de cada capítulo. A proveniência do antigo catálogo de vendas faz a ponte com sua atividade de comércio, que frequentemente engloba antiguidades e quinquilharias. Um sketchbook é o caderno onde se colocam ideias e rabiscos soltos, um registro desordenado e pessoal. Como formato, sugere e contribui para um denso envolvimento com a trama.

Na verdade, formato e projeto gráfico acompanham uma série de livros do autor. Reflete de forma ampla seu universo ficcional. Cria identidade de série, mas funciona de modo a dar a individualidade característica de cada volume.

Depois de digerir o texto, a forma se tornou indissociável do conteúdo. A percepção daqueles elementos visuais é outra, diferente de quando bati os olhos pela primeira vez. (Um parênteses: se o design é a forma e o texto é o conteúdo, a forma também tem conteúdo. Quer dizer, o trabalho gráfico com imagens, ilustrações, cores e material do livro constrói uma narrativa paralela e complementar à história). O design deste livro funciona muito bem pra exemplificar um projeto coerente e expressivo. Retomando a ideia inicial aqui tratada, contudo, foi a experiência de ler seu texto que provocou uma nova percepção de seu aspecto visual/físico.

A possibilidade dos sentidos variarem está ligada à combinação de seus diferentes elementos. Coelho Netto coloca que a mensagem poética produz “marcas ou traços simultâneos que se superpõem”. De um lado há o texto com narrativa, ritmo, composição, linguagem. De outro o projeto gráfico, com narrativa, ritmo, composição, linguagem. Todos superpostos simultaneamente. Precisamente falando sobre algo que está aberto a leituras.

Minha leitura do objeto-livro de começo foi uma, que mudou após ler o texto. Assim como quando reler o texto, a percepção sobre ele pode variar. Assim como olhando agora, novamente, penso em outras coisas. Assim como sua leitura certamente será diferente. E isso permite a poesia.

Obs.: os livros do Mutarelli são joia (além do projeto gráfico…).

Obs. 2: não dá pra se julgar o livro pela capa, mas quando o livro é bom um projeto gráfico legal deixa ele ainda melhor.

Referência
[1] COELHO NETTO, J. Teixeira. Semiótica, informação e comunicação. 5. ed. São Paulo: Perspectiva, 2001.
> MUTARELLI, Lourenço. O cheiro do ralo. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

Links
Lourenço Mutarelli
Kiko Farkas / Máquina Estúdio

Carlos Bauer

Carlos Bauer

Recém-formado em Design (UTFPR) gosta de design que só vendo. Hoje atua como designer gráfico na Feel the Future e investiga as relações de design e linguagem.

Conteúdo relacionado

Comentários

Os comentários estão encerrados.

Significados múltiplos

Por Carlos Bauer

Possivelmente você já passou por uma situação como essa: algo que lembrava ser de determinado modo e, revendo, teve uma nova impressão. De duas, uma: na primeira vez não foi dada muita atenção ou a tal coisa foi percebida por um novo ponto de vista. A poesia entra em jogo nessa de uma mesma coisa poder ser percebida de várias formas.

A mensagem com valor poético não se esgota: possibilita um sem-fim de abordagens. Coelho Netto [1] explica que “seu significado poderá variar tanto quanto forem seus receptores ou, ainda, variar para um mesmo receptor, em momentos diferentes”. Isso porque as pessoas são diferentes, pensam diferente e mudam o tempo todo.

Pegando como exemplo este livro, que me seduziu pela capa: só depois de tirar da prateleira vi que era “O cheiro do ralo”, do Mutarelli (um daqueles casos “li o livro depois de ver o filme”). Na capa um padrão e uma ilustração manuais, acompanhados do título. O formato é de um sketchbook: bordas arredondadas e miolo em papel pólen. Dentro, abrem os capítulos ilustrações com a mesma pegada, vintage bico de pena, que foram retiradas de um catálogo de 1902 de uma loja departamento americana. Tanto essas ilustrações como o texto interno são impressos em um tom de verde musgo, dominante na capa. O padrão da capa é ilustrado pelo próprio Mutarelli e o projeto gráfico é creditado a Kiko Farkas e Mateus Valadares, do Máquina Estúdio (vale a pena dar uma conferida).

O caso é que de começo, o design do livro me causou certas impressões, a combinação de cores/formas/material sugeriu uma ou outra ideia. Lendo o livro, tudo fez muito sentido. Um ritmo envolvente conta a história de um cínico vendedor de uma loja de penhores perturbado com o cheiro que sai do ralo de seu estabelecimento. As ilustrações são estrategicamente selecionadas e relacionadas com o conteúdo de cada capítulo. A proveniência do antigo catálogo de vendas faz a ponte com sua atividade de comércio, que frequentemente engloba antiguidades e quinquilharias. Um sketchbook é o caderno onde se colocam ideias e rabiscos soltos, um registro desordenado e pessoal. Como formato, sugere e contribui para um denso envolvimento com a trama.

Na verdade, formato e projeto gráfico acompanham uma série de livros do autor. Reflete de forma ampla seu universo ficcional. Cria identidade de série, mas funciona de modo a dar a individualidade característica de cada volume.

Depois de digerir o texto, a forma se tornou indissociável do conteúdo. A percepção daqueles elementos visuais é outra, diferente de quando bati os olhos pela primeira vez. (Um parênteses: se o design é a forma e o texto é o conteúdo, a forma também tem conteúdo. Quer dizer, o trabalho gráfico com imagens, ilustrações, cores e material do livro constrói uma narrativa paralela e complementar à história). O design deste livro funciona muito bem pra exemplificar um projeto coerente e expressivo. Retomando a ideia inicial aqui tratada, contudo, foi a experiência de ler seu texto que provocou uma nova percepção de seu aspecto visual/físico.

A possibilidade dos sentidos variarem está ligada à combinação de seus diferentes elementos. Coelho Netto coloca que a mensagem poética produz “marcas ou traços simultâneos que se superpõem”. De um lado há o texto com narrativa, ritmo, composição, linguagem. De outro o projeto gráfico, com narrativa, ritmo, composição, linguagem. Todos superpostos simultaneamente. Precisamente falando sobre algo que está aberto a leituras.

Minha leitura do objeto-livro de começo foi uma, que mudou após ler o texto. Assim como quando reler o texto, a percepção sobre ele pode variar. Assim como olhando agora, novamente, penso em outras coisas. Assim como sua leitura certamente será diferente. E isso permite a poesia.

Obs.: os livros do Mutarelli são joia (além do projeto gráfico…).

Obs. 2: não dá pra se julgar o livro pela capa, mas quando o livro é bom um projeto gráfico legal deixa ele ainda melhor.

Referência
[1] COELHO NETTO, J. Teixeira. Semiótica, informação e comunicação. 5. ed. São Paulo: Perspectiva, 2001.
> MUTARELLI, Lourenço. O cheiro do ralo. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

Links
Lourenço Mutarelli
Kiko Farkas / Máquina Estúdio

Carlos Bauer

Carlos Bauer

Recém-formado em Design (UTFPR) gosta de design que só vendo. Hoje atua como designer gráfico na Feel the Future e investiga as relações de design e linguagem.

Conteúdo relacionado

Comentários

Os comentários estão encerrados.