O mais difícil é o mais aberto

Por Marcos Beccari

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É preciso caminhar na escuridão e se encontrar com o coração do homem, com os olhos da mulher, com os desconhecidos das ruas, dos que a certa hora crepuscular ou em plena noite estrelada precisam nem que seja de um único verso… Esse encontro com o imprevisto vale pelo tanto que a gente andou, por tudo que a gente leu e aprendeu… É preciso perder-se entre os que não conhecemos para que subitamente recolham o que é nosso da rua, da areia, das folhas caídas mil anos no mesmo bosque.
Pablo Neruda.

Das poucas aulas que tive o privilégio assistir do professor de mitologia Marcos Ferreira-Santos, hoje me lembrei do koan do chá que certa vez ele contou para a turma. Sentado em frente do templo, um mestre ancião ensinava seu discípulo a arte de servir o chá: “olhe e aprenda”. Primeiro chegou um rapaz jovem queixando-se que aquele templo precisava urgentemente de reformas, que ninguém entra ali por causa das condições precárias do local. O velho mestre sorriu e respondeu: “É verdade! Aceita uma xícara de chá?”. O rapaz bebeu satisfeito e foi embora.

Depois apareceu uma moça que elogiou o templo, dizendo que aquele lugar era muito bonito e transmitia uma serenidade ímpar. O velho mestre sorriu e respondeu: “É verdade! Aceita uma xícara de chá?”. Mais adiante, aproximou-se um senhor de idade reclamando que as novas gerações estão perdidas, pois ninguém mais reverencia a sabedoria ancestral. Novamente o mestre sorriu e respondeu: “É verdade! Aceita uma xícara de chá?”. Depois que o último senhor foi embora, o jovem discípulo questionou indignado: “Mestre, como vou saber qual é a verdade se o senhor concorda com as ideias contraditórias de todos que passam por aqui?”. O velho mestre sorriu novamente e respondeu: “É verdade! Aceita uma xícara de chá?”.

Pelo que eu lembro, esta anedota era para ilustrar a função do professor de aprofundar o diálogo do discípulo com ele mesmo para que, deste modo, através da mediação do mestre, o aprendiz torne-se um autodidata. Evidentemente, porém, um conto desses nunca se esgota neste ou naquele significado. Tanto é que, mesmo após me revelar tantos sentidos, essa parábola insiste em se mostrar inesgotável na medida em que minhas interpretações retornam à insuficiência inicial.

E assim – eis o pensamento que me fez resgatar tal anedota – às vezes algum ciclo de significado se fecha e fazemos as coisas por elas mesmas, sem nenhum outro propósito além de simplesmente fazê-las. E talvez, quando chegamos neste ponto de servir o chá apenas para servir o chá, a ação ao mesmo tempo mais reflexiva e mais ativa seja a de não fazer nada além de deixar a própria novidade em aberto. Trata-se de um tipo de aceitação que envolve a suspensão de uma nova ação, o que tanto pode alimentar vícios quanto aprofundar virtudes e perspectivas – depende do quanto conseguimos mantê-la, a novidade em si, em aberto.

Digamos que o discípulo do mestre tenha se tornado, além de autodidata, um sofista, um pensador que se assemelha ao filósofo-mestre em todos os aspectos (armando-se com a mesma retórica e utilizando as mesmas referências), exceto pelo efeito contundente do enunciado “não há verdade” (então qualquer coisa serve). Ora, a afirmação “é verdade!” fazia parte da arte de servir o chá. Para o ex-aprendiz, contudo, isso não passava de um truque retórico. O detalhe é que não se tratava de “a” Verdade única e original, mas de qualquer uma. Na superfície, pois, a diferença é muito pequena: o princípio de que “qualquer coisa serve” porque não há verdade ou porque, pelo contrário, tudo que existe (que acontece ou que é pensado) pode ser verdade.

O equívoco do discípulo que virou sofista foi optar pelo caminho mais fácil: suspender totalmente a verdade ao invés de manter-se a si mesmo em suspenso em relação à possibilidade da verdade. Em suma, seu erro foi o de não conseguir manter-se até o fim em aberto. Esta me parece ser a grande dificuldade de todos aqueles que, como eu, sentem prazer com o mero “conhecer”: distinguir aquilo que, por muito pouco, pode deixar de ser verdade e aquilo que, exatamente por deixar de ser o que sempre foi (ou o que nos parecia ser), nos surpreende.

Ainda que não percebamos, o conhecimento somente ocorre no imprevisto de um encontro furtivo, escondendo-se no meio das mesmas repetições cotidianas. A verdade, por sua vez, se dá na fidelidade que temos para com este encontro, fidelidade esta que é contrária às tentativas de negar o interdito que a verdade coloca a si mesma (de tramar seu próprio fracasso), simplesmente porque ainda é o encontro a fonte de tais tentativas. Sim, o fracasso da verdade faz parte dela mesma. Não porque seja algum tipo de piada interna, mas porque a fidelidade que a constitui opera em um processo infinito, um fluxo em movimento, irredutível ao momento no qual a surpresa do encontro nos coloca (e nos mantém) em suspenso.

Com isso quero dizer que ser cético não é o mesmo que ser sofista. O cético ainda é filosófico por sustentar que, embora nenhuma verdade se deixa reconhecer enquanto tal, este não-reconhecimento é o que possibilita o pensamento justamente por indicar algo que escapa à tentativa do pensamento em dispô-lo como ideia pronta. Já para o sofista – figura que sobrevive na ironia/cinismo das atuais dinâmicas intersubjetivas pautadas pela forma-mercadoria –, não há nada além de jogos de linguagem, o que anularia quaisquer obstáculos a um “pensamento” que desliza por entre tais jogos.

A diferença está no obstáculo ou na falta de obstáculo ao pensamento: o sofista isola seu pensamento em um ciclo fechado (livre de obstáculos) e o cético opera um pensamento que pressupõe um obstáculo a si mesmo, necessário para a constante ruptura de um processo em aberto. Obstáculo, entenda-se, como uma limitação da qual não se deve poupar esforços para sair. O que no limite significa a margem entre resignar-se à negação da repetição do mesmo (aceita uma xícara de chá?) ou surpreender-se com cada repetição assentida enquanto tal.

Tomemos o discurso do amor idealizado: são apenas circunstâncias contingentes que impedem que os amantes saciem o desejo que sentem um pelo outro. O cético não diria, como ingenuamente esperamos, que tal momento é ilusório, fantasioso, impossível de acontecer. Diria que, exatamente por ser impossível, é que pode acontecer – o obstáculo fundamental ao pensamento não é aquilo que posterga para sempre sua resolução final, mas antes o que se considera impossível, os milagres que somente acontecem porque não esperávamos por eles.

Se obstáculo implica mais esforço do que desistência, o fácil enunciado sofista de que tudo depende do ponto de vista (tudo é válido porque nada é válido) mostra-se tão insuficiente quanto a premissa platonista de que o pensamento filosófico pode apreender a realidade em si (a Verdade). O esforço cético reside em compreender que essa realidade, a “coisa mesma”, depende do pensamento que a afronta, que a discute e que apesar de tudo a aceita, mantendo-se fiel à furtividade do encontro na medida em que se esforça para além do mero reencontro.

Repetir, enfim, que não importa o que se diga “é verdade” (a ser brindada com mais uma xícara de chá) nem sempre significa cinismo, essa descrença performativa que se justifica em sua própria contradição. É verdade que essa leitura apressada dos críticos da pós-modernidade corresponde, em grande medida, ao espetáculo cada vez mais perverso e soberano das solidões compartilhadas. No entanto, quem sabe não seja uma inesperada disposição ao encontro imprevisível, ambíguo e incompleto, sem as amarras de um pensamento previdente?

Impossível, é verdade, pois para cada encontro que se repete teremos uma resposta diferente. Aceita uma xícara de chá? O importante é que ainda haja uma resposta, o importante é que ainda haja uma reação.

A sucessão dos atuais presentes é apenas a manifestação de alguma coisa mais profunda: a maneira pela qual cada um retoma toda a vida, mas a um nível ou grau diferente do precedente, todos os níveis ou graus coexistindo e se oferecendo à nossa escolha, do fundo de um passado que jamais foi presente. – Gilles Deleuze, Diferença e repetição (Rio de Janeiro: Graal, 1998, p. 147).

Ilustração de Eduardo Souza para este texto.

Ilustração de Eduardo Souza para este texto.

Marcos Beccari

Marcos Beccari

Doutorando em Educação na USP, designer gráfico e mestre em Design pela UFPR. Professor substituto no curso de Bacharelado em Design Gráfico na UFPR. Interessa-se por Filosofia, Psicologia e Comunicação, o que o levou a pesquisar sobre Filosofia do Design e a encarar o design como articulação simbólica na mediação ficcional que organiza o real. Além de atuar como professor e pesquisador, coordena o blog Filosofia do Design, integra o podcast AntiCast, é membro do projeto "Cinema e Educação: tela, espelho e janela" (USP-Fapesp) e colabora com outros blogs/revistas de design e comunicação.

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É preciso caminhar na escuridão e se encontrar com o coração do homem, com os olhos da mulher, com os desconhecidos das ruas, dos que a certa hora crepuscular ou em plena noite estrelada precisam nem que seja de um único verso… Esse encontro com o imprevisto vale pelo tanto que a gente andou, por tudo que a gente leu e aprendeu… É preciso perder-se entre os que não conhecemos para que subitamente recolham o que é nosso da rua, da areia, das folhas caídas mil anos no mesmo bosque.
Pablo Neruda.

Das poucas aulas que tive o privilégio assistir do professor de mitologia Marcos Ferreira-Santos, hoje me lembrei do koan do chá que certa vez ele contou para a turma. Sentado em frente do templo, um mestre ancião ensinava seu discípulo a arte de servir o chá: “olhe e aprenda”. Primeiro chegou um rapaz jovem queixando-se que aquele templo precisava urgentemente de reformas, que ninguém entra ali por causa das condições precárias do local. O velho mestre sorriu e respondeu: “É verdade! Aceita uma xícara de chá?”. O rapaz bebeu satisfeito e foi embora.

Depois apareceu uma moça que elogiou o templo, dizendo que aquele lugar era muito bonito e transmitia uma serenidade ímpar. O velho mestre sorriu e respondeu: “É verdade! Aceita uma xícara de chá?”. Mais adiante, aproximou-se um senhor de idade reclamando que as novas gerações estão perdidas, pois ninguém mais reverencia a sabedoria ancestral. Novamente o mestre sorriu e respondeu: “É verdade! Aceita uma xícara de chá?”. Depois que o último senhor foi embora, o jovem discípulo questionou indignado: “Mestre, como vou saber qual é a verdade se o senhor concorda com as ideias contraditórias de todos que passam por aqui?”. O velho mestre sorriu novamente e respondeu: “É verdade! Aceita uma xícara de chá?”.

Pelo que eu lembro, esta anedota era para ilustrar a função do professor de aprofundar o diálogo do discípulo com ele mesmo para que, deste modo, através da mediação do mestre, o aprendiz torne-se um autodidata. Evidentemente, porém, um conto desses nunca se esgota neste ou naquele significado. Tanto é que, mesmo após me revelar tantos sentidos, essa parábola insiste em se mostrar inesgotável na medida em que minhas interpretações retornam à insuficiência inicial.

E assim – eis o pensamento que me fez resgatar tal anedota – às vezes algum ciclo de significado se fecha e fazemos as coisas por elas mesmas, sem nenhum outro propósito além de simplesmente fazê-las. E talvez, quando chegamos neste ponto de servir o chá apenas para servir o chá, a ação ao mesmo tempo mais reflexiva e mais ativa seja a de não fazer nada além de deixar a própria novidade em aberto. Trata-se de um tipo de aceitação que envolve a suspensão de uma nova ação, o que tanto pode alimentar vícios quanto aprofundar virtudes e perspectivas – depende do quanto conseguimos mantê-la, a novidade em si, em aberto.

Digamos que o discípulo do mestre tenha se tornado, além de autodidata, um sofista, um pensador que se assemelha ao filósofo-mestre em todos os aspectos (armando-se com a mesma retórica e utilizando as mesmas referências), exceto pelo efeito contundente do enunciado “não há verdade” (então qualquer coisa serve). Ora, a afirmação “é verdade!” fazia parte da arte de servir o chá. Para o ex-aprendiz, contudo, isso não passava de um truque retórico. O detalhe é que não se tratava de “a” Verdade única e original, mas de qualquer uma. Na superfície, pois, a diferença é muito pequena: o princípio de que “qualquer coisa serve” porque não há verdade ou porque, pelo contrário, tudo que existe (que acontece ou que é pensado) pode ser verdade.

O equívoco do discípulo que virou sofista foi optar pelo caminho mais fácil: suspender totalmente a verdade ao invés de manter-se a si mesmo em suspenso em relação à possibilidade da verdade. Em suma, seu erro foi o de não conseguir manter-se até o fim em aberto. Esta me parece ser a grande dificuldade de todos aqueles que, como eu, sentem prazer com o mero “conhecer”: distinguir aquilo que, por muito pouco, pode deixar de ser verdade e aquilo que, exatamente por deixar de ser o que sempre foi (ou o que nos parecia ser), nos surpreende.

Ainda que não percebamos, o conhecimento somente ocorre no imprevisto de um encontro furtivo, escondendo-se no meio das mesmas repetições cotidianas. A verdade, por sua vez, se dá na fidelidade que temos para com este encontro, fidelidade esta que é contrária às tentativas de negar o interdito que a verdade coloca a si mesma (de tramar seu próprio fracasso), simplesmente porque ainda é o encontro a fonte de tais tentativas. Sim, o fracasso da verdade faz parte dela mesma. Não porque seja algum tipo de piada interna, mas porque a fidelidade que a constitui opera em um processo infinito, um fluxo em movimento, irredutível ao momento no qual a surpresa do encontro nos coloca (e nos mantém) em suspenso.

Com isso quero dizer que ser cético não é o mesmo que ser sofista. O cético ainda é filosófico por sustentar que, embora nenhuma verdade se deixa reconhecer enquanto tal, este não-reconhecimento é o que possibilita o pensamento justamente por indicar algo que escapa à tentativa do pensamento em dispô-lo como ideia pronta. Já para o sofista – figura que sobrevive na ironia/cinismo das atuais dinâmicas intersubjetivas pautadas pela forma-mercadoria –, não há nada além de jogos de linguagem, o que anularia quaisquer obstáculos a um “pensamento” que desliza por entre tais jogos.

A diferença está no obstáculo ou na falta de obstáculo ao pensamento: o sofista isola seu pensamento em um ciclo fechado (livre de obstáculos) e o cético opera um pensamento que pressupõe um obstáculo a si mesmo, necessário para a constante ruptura de um processo em aberto. Obstáculo, entenda-se, como uma limitação da qual não se deve poupar esforços para sair. O que no limite significa a margem entre resignar-se à negação da repetição do mesmo (aceita uma xícara de chá?) ou surpreender-se com cada repetição assentida enquanto tal.

Tomemos o discurso do amor idealizado: são apenas circunstâncias contingentes que impedem que os amantes saciem o desejo que sentem um pelo outro. O cético não diria, como ingenuamente esperamos, que tal momento é ilusório, fantasioso, impossível de acontecer. Diria que, exatamente por ser impossível, é que pode acontecer – o obstáculo fundamental ao pensamento não é aquilo que posterga para sempre sua resolução final, mas antes o que se considera impossível, os milagres que somente acontecem porque não esperávamos por eles.

Se obstáculo implica mais esforço do que desistência, o fácil enunciado sofista de que tudo depende do ponto de vista (tudo é válido porque nada é válido) mostra-se tão insuficiente quanto a premissa platonista de que o pensamento filosófico pode apreender a realidade em si (a Verdade). O esforço cético reside em compreender que essa realidade, a “coisa mesma”, depende do pensamento que a afronta, que a discute e que apesar de tudo a aceita, mantendo-se fiel à furtividade do encontro na medida em que se esforça para além do mero reencontro.

Repetir, enfim, que não importa o que se diga “é verdade” (a ser brindada com mais uma xícara de chá) nem sempre significa cinismo, essa descrença performativa que se justifica em sua própria contradição. É verdade que essa leitura apressada dos críticos da pós-modernidade corresponde, em grande medida, ao espetáculo cada vez mais perverso e soberano das solidões compartilhadas. No entanto, quem sabe não seja uma inesperada disposição ao encontro imprevisível, ambíguo e incompleto, sem as amarras de um pensamento previdente?

Impossível, é verdade, pois para cada encontro que se repete teremos uma resposta diferente. Aceita uma xícara de chá? O importante é que ainda haja uma resposta, o importante é que ainda haja uma reação.

A sucessão dos atuais presentes é apenas a manifestação de alguma coisa mais profunda: a maneira pela qual cada um retoma toda a vida, mas a um nível ou grau diferente do precedente, todos os níveis ou graus coexistindo e se oferecendo à nossa escolha, do fundo de um passado que jamais foi presente. – Gilles Deleuze, Diferença e repetição (Rio de Janeiro: Graal, 1998, p. 147).

Ilustração de Eduardo Souza para este texto.

Ilustração de Eduardo Souza para este texto.

Marcos Beccari

Marcos Beccari

Doutorando em Educação na USP, designer gráfico e mestre em Design pela UFPR. Professor substituto no curso de Bacharelado em Design Gráfico na UFPR. Interessa-se por Filosofia, Psicologia e Comunicação, o que o levou a pesquisar sobre Filosofia do Design e a encarar o design como articulação simbólica na mediação ficcional que organiza o real. Além de atuar como professor e pesquisador, coordena o blog Filosofia do Design, integra o podcast AntiCast, é membro do projeto "Cinema e Educação: tela, espelho e janela" (USP-Fapesp) e colabora com outros blogs/revistas de design e comunicação.

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