A força maior da violência simbólica

Por Marcos Beccari

“Os deuses ocultaram o que faz viver os homens.” – Hesíodo, em Os trabalhos e os dias.

Ainda temos essa mania hegeliana de querer enxergar qualquer conjunto de fatos a partir de uma suposta causa e uma possível finalidade, costurando arbitrariamente os elementos constituintes. Como se esta recente revolta generalizada no Brasil fosse, por exemplo, uma questão de patriotismo ou de conspiração. Acontece que não é.

Não há um conjunto organizado passível de ser analisado em torno de agentes e fatores centrais. Não há uma síntese, não há um líder, não há uma direção a ser seguida. Qualquer coisa como o “hino nacional” ou um cartaz improvisado serve apenas de pretexto para algo muito mais forte e sobre o qual qualquer tentativa de explicação dissolve-se, diante dessa mesma força, em um balbucio inaudível e contraditório.

É certo que uma hora ou outra cederemos ao efeito corrosivo de uma explicação e de uma solução. Mas também é certo que algo permanecerá ali, suspenso em nada e privado de qualquer fundamento. Por mais que a “ocasião faça o ladrão”, uma desmotivação nunca se resume à infeliz circunstância que a provocou. É quase como um efeito que se mostra maior do que a causa que o teria suscitado: como um grupo de amigos ou familiares que passaram a se detestar por questões de dinheiro, quando na verdade não foi o dinheiro que provocou o ódio, mas o ódio já estava ali plantado faz tempo, prestes a pronunciar-se em nome de qualquer coisa.

Embora seja difícil de identificar essa força preexistente antes deste ou daquele momento, ela nunca é imprecisa. Pelo contrário, tanto sua causa quanto a circunstância que a revela são insuficientes para precisá-la. O pensamento predominante, inclusive, não consegue conceber essa nossa falta de princípios desejada como tal senão como resignação e falta de senso crítico. Ocorre que essa falta de princípios é uma força tão contundente quanto mais for subestimada.

Enquanto qualquer ideologia consiste na ilusão de poder conciliar a precariedade da vida com o próprio reconhecimento de tal precariedade, nossa força consiste na violência simbólica de aprovar uma vida irremediavelmente precária. Não significa que estamos desatentos aos problemas, muito menos que queremos ignorá-los. Pelo contrário, somos os mais atentos e os primeiros interessados em buscar novas direções, uma vez que já não nos resta esperança alguma.

Em Os trabalhos e os dias, Hesíodo associa a esperança ao último flagelo que ficou na caixa de Pandora, ou seja, à livre disposição dos homens em acreditar na salvação e no antídoto de todos os males quando estão diante de um veneno. Com efeito, tudo o que se assemelha à esperança, à espera, constitui um vício, uma fraqueza. Nunca uma intervenção, sempre um duplo-substituto. É neste sentido que Žižek nos alerta para “não nos apaixonarmos por nós mesmos”.

Muito diferente é uma força que não quer dizer nada, não significa nada e que a qualquer momento pode, sem avisar, reaparecer com incalculável intensidade – justamente ao dispensar a esperança. É uma força nômade na medida em que não se deixa representar por códigos e nem traduzir por conceitos, mas permanece num deslocamento constante entre códigos e conceitos.

Precisamente por este aspecto é que, aliás, podemos enxergar o próprio design. Podemos “codificar” causas e circunstâncias que deram origem a um projeto como, digamos, o cinema noir em Hollywood – a experiência da Segunda Guerra Mundial, a crise do patriarcado etc. –, mas nunca será suficiente. Há uma espécie de autonomia criativa que se auto-organiza, uma violência de sentido que emerge como que “do nada”. Por isso eu insisto que design nunca se limita a um “projeto”, mas um tipo de circuito em que cada ação ou pensamento, de algum modo, causa suas próprias causas.

Mas com isso quero dizer que essa codificação em “tempo real” tem sido um risco iminente: é exatamente nos momentos em que parece haver maior “transparência” – agora somos nós contra eles – que a ideologia bate à porta, dizendo “não faz sentido lutar sem haver oposição” (como lutar contra a corrupção se ninguém é a favor da mesma). A armadilha aqui é tentar encontrar um inimigo depois da luta ter começado – aliás, confundir a violência em si com uma luta.

Quando confundimos uma luta pura e simples (vandalismo, revolução etc.) com violência simbólica (parar o trânsito de uma cidade como SP), o mais fácil é adotarmos a moral pacífica de uma “cidadania” que já não possui força alguma, somente uma injunção baseada numa estrutura normativa vazia. É disso que se trata o conservadorismo mais radical: a transposição da violência simbólica a uma ficção novelística cuja função é inventar um espantalho provisório facilmente eliminável.

Trata-se de uma manobra que tem “funcionado” desde as Diretas Já e o pseudo-protesto do “cansei” em 2007, mas que persiste implicitamente em nossas fugas mais cotidianas. Tipo assim: estou deveras obeso e vou processar o McDonalds porque a comida vendida por eles comprometeu minha “qualidade de vida”. Ou ainda: sofro preconceito porque sou homossexual, então com essa aprovação do projeto de cura gay vou exigir uma indenização do governo.

Ou seja, a ideia de uma compensação dos supostos responsáveis, em última análise, só serve para privá-los da posição que os torna responsáveis – e é basicamente isso que nos incitam o governo, a mídia e as autoridades: “vocês estão certos, a culpa não é de vocês!”. Ao invés disso, muito mais sensato seria, pra começo de conversa, resistir a qualquer tipo de consenso – especialmente sobre quem é culpado e quem é vítima. E não com a esperança de melhorias imediatas, mas com o ceticismo de que não há mais como a situação piorar e, se não fizermos nada, ninguém vai fazer por nós.

Por este caminho chegaríamos inevitavelmente ao questionamento de cada esquema ideológico e de cada programa político existente, mas obviamente sem acabar nesse ponto. O difícil é justamente continuar a duvidar sem contar com um único ponto ao qual devemos chegar. Eis nosso maior desafio e, ao mesmo tempo, nossa grande munição em potencial: a violência simbólica de tornar o questionamento um hábito.

Marcos Beccari

Marcos Beccari

Doutorando em Educação na USP, designer gráfico e mestre em Design pela UFPR. Professor substituto no curso de Bacharelado em Design Gráfico na UFPR. Interessa-se por Filosofia, Psicologia e Comunicação, o que o levou a pesquisar sobre Filosofia do Design e a encarar o design como articulação simbólica na mediação ficcional que organiza o real. Além de atuar como professor e pesquisador, coordena o blog Filosofia do Design, integra o podcast AntiCast, é membro do projeto "Cinema e Educação: tela, espelho e janela" (USP-Fapesp) e colabora com outros blogs/revistas de design e comunicação.

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Por Marcos Beccari

“Os deuses ocultaram o que faz viver os homens.” – Hesíodo, em Os trabalhos e os dias.

Ainda temos essa mania hegeliana de querer enxergar qualquer conjunto de fatos a partir de uma suposta causa e uma possível finalidade, costurando arbitrariamente os elementos constituintes. Como se esta recente revolta generalizada no Brasil fosse, por exemplo, uma questão de patriotismo ou de conspiração. Acontece que não é.

Não há um conjunto organizado passível de ser analisado em torno de agentes e fatores centrais. Não há uma síntese, não há um líder, não há uma direção a ser seguida. Qualquer coisa como o “hino nacional” ou um cartaz improvisado serve apenas de pretexto para algo muito mais forte e sobre o qual qualquer tentativa de explicação dissolve-se, diante dessa mesma força, em um balbucio inaudível e contraditório.

É certo que uma hora ou outra cederemos ao efeito corrosivo de uma explicação e de uma solução. Mas também é certo que algo permanecerá ali, suspenso em nada e privado de qualquer fundamento. Por mais que a “ocasião faça o ladrão”, uma desmotivação nunca se resume à infeliz circunstância que a provocou. É quase como um efeito que se mostra maior do que a causa que o teria suscitado: como um grupo de amigos ou familiares que passaram a se detestar por questões de dinheiro, quando na verdade não foi o dinheiro que provocou o ódio, mas o ódio já estava ali plantado faz tempo, prestes a pronunciar-se em nome de qualquer coisa.

Embora seja difícil de identificar essa força preexistente antes deste ou daquele momento, ela nunca é imprecisa. Pelo contrário, tanto sua causa quanto a circunstância que a revela são insuficientes para precisá-la. O pensamento predominante, inclusive, não consegue conceber essa nossa falta de princípios desejada como tal senão como resignação e falta de senso crítico. Ocorre que essa falta de princípios é uma força tão contundente quanto mais for subestimada.

Enquanto qualquer ideologia consiste na ilusão de poder conciliar a precariedade da vida com o próprio reconhecimento de tal precariedade, nossa força consiste na violência simbólica de aprovar uma vida irremediavelmente precária. Não significa que estamos desatentos aos problemas, muito menos que queremos ignorá-los. Pelo contrário, somos os mais atentos e os primeiros interessados em buscar novas direções, uma vez que já não nos resta esperança alguma.

Em Os trabalhos e os dias, Hesíodo associa a esperança ao último flagelo que ficou na caixa de Pandora, ou seja, à livre disposição dos homens em acreditar na salvação e no antídoto de todos os males quando estão diante de um veneno. Com efeito, tudo o que se assemelha à esperança, à espera, constitui um vício, uma fraqueza. Nunca uma intervenção, sempre um duplo-substituto. É neste sentido que Žižek nos alerta para “não nos apaixonarmos por nós mesmos”.

Muito diferente é uma força que não quer dizer nada, não significa nada e que a qualquer momento pode, sem avisar, reaparecer com incalculável intensidade – justamente ao dispensar a esperança. É uma força nômade na medida em que não se deixa representar por códigos e nem traduzir por conceitos, mas permanece num deslocamento constante entre códigos e conceitos.

Precisamente por este aspecto é que, aliás, podemos enxergar o próprio design. Podemos “codificar” causas e circunstâncias que deram origem a um projeto como, digamos, o cinema noir em Hollywood – a experiência da Segunda Guerra Mundial, a crise do patriarcado etc. –, mas nunca será suficiente. Há uma espécie de autonomia criativa que se auto-organiza, uma violência de sentido que emerge como que “do nada”. Por isso eu insisto que design nunca se limita a um “projeto”, mas um tipo de circuito em que cada ação ou pensamento, de algum modo, causa suas próprias causas.

Mas com isso quero dizer que essa codificação em “tempo real” tem sido um risco iminente: é exatamente nos momentos em que parece haver maior “transparência” – agora somos nós contra eles – que a ideologia bate à porta, dizendo “não faz sentido lutar sem haver oposição” (como lutar contra a corrupção se ninguém é a favor da mesma). A armadilha aqui é tentar encontrar um inimigo depois da luta ter começado – aliás, confundir a violência em si com uma luta.

Quando confundimos uma luta pura e simples (vandalismo, revolução etc.) com violência simbólica (parar o trânsito de uma cidade como SP), o mais fácil é adotarmos a moral pacífica de uma “cidadania” que já não possui força alguma, somente uma injunção baseada numa estrutura normativa vazia. É disso que se trata o conservadorismo mais radical: a transposição da violência simbólica a uma ficção novelística cuja função é inventar um espantalho provisório facilmente eliminável.

Trata-se de uma manobra que tem “funcionado” desde as Diretas Já e o pseudo-protesto do “cansei” em 2007, mas que persiste implicitamente em nossas fugas mais cotidianas. Tipo assim: estou deveras obeso e vou processar o McDonalds porque a comida vendida por eles comprometeu minha “qualidade de vida”. Ou ainda: sofro preconceito porque sou homossexual, então com essa aprovação do projeto de cura gay vou exigir uma indenização do governo.

Ou seja, a ideia de uma compensação dos supostos responsáveis, em última análise, só serve para privá-los da posição que os torna responsáveis – e é basicamente isso que nos incitam o governo, a mídia e as autoridades: “vocês estão certos, a culpa não é de vocês!”. Ao invés disso, muito mais sensato seria, pra começo de conversa, resistir a qualquer tipo de consenso – especialmente sobre quem é culpado e quem é vítima. E não com a esperança de melhorias imediatas, mas com o ceticismo de que não há mais como a situação piorar e, se não fizermos nada, ninguém vai fazer por nós.

Por este caminho chegaríamos inevitavelmente ao questionamento de cada esquema ideológico e de cada programa político existente, mas obviamente sem acabar nesse ponto. O difícil é justamente continuar a duvidar sem contar com um único ponto ao qual devemos chegar. Eis nosso maior desafio e, ao mesmo tempo, nossa grande munição em potencial: a violência simbólica de tornar o questionamento um hábito.

Marcos Beccari

Marcos Beccari

Doutorando em Educação na USP, designer gráfico e mestre em Design pela UFPR. Professor substituto no curso de Bacharelado em Design Gráfico na UFPR. Interessa-se por Filosofia, Psicologia e Comunicação, o que o levou a pesquisar sobre Filosofia do Design e a encarar o design como articulação simbólica na mediação ficcional que organiza o real. Além de atuar como professor e pesquisador, coordena o blog Filosofia do Design, integra o podcast AntiCast, é membro do projeto "Cinema e Educação: tela, espelho e janela" (USP-Fapesp) e colabora com outros blogs/revistas de design e comunicação.

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