A morte do design como sua única possibilidade

Por Rob Batista

Embora eu não me  entregue completamente ao tal Design Thinking e tenha algumas objeções, vejo aí algumas contribuições muito importantes para o design e para a sociedade. Design Thinking, a grosso modo, seria a “forma de pensar do designer” aplicada a outras áreas. Não vou me debruçar sobre questões relacionadas ao tema, que já foi longamente discutido em vários posts e publicações, como no AntiCast. Mas suscito essa abordagem para provocar alguns questionamentos que nos levam a outras questões.

Se há um modo de pensar, projetar, realizar, onde termina o designer e começa o design thinker, o que os diferencia? O suporte material de trabalho? O produto ou resultado desse trabalho? A técnica? Pois se é o modo projetual ou processual de pensar que torna alguém um “designer de sapatos” e não um “fazedor de sapatos”, então qual o problema que existe em dizer “designer de unhas”, desde que se aproprie desses mesmos processos de design nessa atividade? Ok, antes de me apedrejarem, vamos adiante. Consideremos que seja um sacrilégio dizer que existe “designer de unhas”, mesmo se tivesse os mesmos processos projetuais aplicados. Diante disso, insisto: o que, então, torna alguém um designer? Só nos resta considerar que existe um rol de elementos materiais que suportam a prática da atividade. A partir daí, podemos julgar quem é ou não é designer. Aplique o que você chama de “modo de projetar do designer”. Projete um cartaz: parabéns, você é um designer gráfico. Projete um copo, e então você é um designer de produto. Projete agora as propriedades formais e funcionais (sejam lá quais fossem) de uma unha para determinada finalidade. Waaait! Não tem unha na lista, não pode. É blasfêmia!

thinker

Não estou tentando dizer se existe ou não designer de unha, isso não é defesa, nem acusação. Apenas questiono quem propõe limitações baseadas em um olhar extremamente conservador, ou limita o design à uma série de elementos e suportes materiais sem nunca apresentar argumentos plausíveis para isso. “Design é isso, é assim, pronto e acabou”.

Uma outra abordagem ou vertente bastante polêmica que ajuda a fundamentar a necessidade desses questionamentos é o Design de Serviços. Sei que nesse momento a Ordem Universal dos Cavaleiros Protetores do Design Conservador virá com sete espadas me dizer que isso também não existe, mas vamos lá. Há um tempo atrás fui a uma palestra que derrubou uma série de preconceitos meus. Em várias situações, continuo vendo no apelo, geralmente comercial, do Design Thinking e do Service Design apenas uma nova plástica e novos nomes para o velho Marketing. Apesar disso, achei muito interessante a teoria do Design de Serviços exposta pelo palestrante. Segundo ele, não se trata de um novo design, mas de uma nova abordagem. Enquanto antigamente se projetava propriedades formais e funcionais, hoje se projeta uma realização ou serviço, mesmo quando um produto material está envolvido. O produto (como um copo ou uma caneta) é um mero avatar materializador de um serviço que ele presta. O material pode continuar presente, mas é o intangível que é realmente projetado. Não existe cartaz, nem copo, nem cadeira. Existe uma ideia que se projeta como corpo material para determinado propósito.

“Não tente entortar (ou projetar) a colher. É impossível... A colher não existe”

“Não tente entortar (ou projetar) a colher. É impossível… A colher não existe”

Sendo assim, uma lista de elementos materiais não pode dizer quem é ou não é designer, pelo contrário, seguindo essa lógica, é o processo nascido de um projeto imaterial, ideal, que determina se está mais próximo do design ou não (vide a diferença do designer e do fazedor de sapatos). Considerando isso, cai por terra qualquer hipótese para o mimimi bobo de quem tenta delimitar quase que cientificamente quem é designer ou não pelo material tangível com que trabalha.

Tudo isso só reforça uma coisa: para se afirmar, a profissão do design pautada exaustivamente apenas em questões materiais (como qualquer outra inserida neste modelo sócio-econômico) tenta se limitar demasiadamente e, talvez assim, se afaste ainda mais do que poderia ser considerado o design em essência ideal. Para “ser design”, a profissão se afasta do próprio Design e se configura como uma tentativa profundamente frustrada e miseravelmente fracassada de ser algo maior. O resultado disso é o seguinte: o design (com “d” minúsculo) não é capaz de ser nem uma ficção (talvez a única verdade em um mundo de ficções). Muito abaixo disso, a profissão do design é uma farsa que, paradoxalmente e de modo contrário ao seu próprio intento natural, só se afirma quando nega o próprio Design, ou seja, o design menor (que luta para afirmar seu reinado), só será útil se morrer e deixar espaço para o Design que não precisa lutar para afirmar nada, que não depende dos contornos de uma profissão, e que apenas existe.

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É claro que é impossível entender isso se não reconhecer que não existe uma coisa entendida universal e unanimemente como design. Entre várias abordagens, vejo duas que se tornam pontos convergentes para várias outras. Uma é o design verbo (na língua inglesa), expressão de uma atividade humana, de um agir. Sim, para a alegria de muitos, falo daquele design que nasceu na Revolução Industrial. Nascia então o “design submetido ao designer”, o que só existe quando há uma ação humana e que se configura pela realização ativa de certas competências, habilidades e técnicas, reunidas na prática de um indivíduo, e com determinadas finalidades.

A outra abordagem, que a cada dia ganha mais espaço, é o Design enquanto substantivo, coisa em sí, como projeto, processo ou disposição, articulação dos elementos constituintes de algo, que também responde a necessidades de um sistema ou conjunto de coisas, mas que existe em sí e não precisa necessariamente de atividade humana. É o Design do qual fala Luigi Colani, por exemplo. Essa abordagem dá o nome “design” à uma concepção de projeto, uma ideia, que nem sempre depende ou resulta da ação humana, mas é anterior à ela, pois já estaria presente na natureza e em tudo de onde aprendemos quaisquer formas de organização “consciente de sí”. Sendo assim, o design como concepção organizacional de projeto não pode ter nascido na Revolução Industrial, e, caso não fosse anterior à ela, talvez não fosse nem possível surgir a própria atividade como prática de um indivíduo naquele período, pois a reunião daquelas competências todas precisariam, nessa lógica, de uma concepção ideal a partir da qual se materializaria. Está aí o Design com “D” maiúsculo. Que fique claro, não vejo isso como a “abordagem mais correta”, mas entendo que seja fundamental para contribuir com uma melhor compreensão do que é, ou poderia ser, design, mesmo que se quebrem paradigmas aos quais nos apegamos com fervor.

A natureza ainda é o melhor designer que conheço – Luigi Colani

É evidente que o questionamento faz desmoronar muitas bases pregadas como sólidas e que estruturaram essa profissão desde que a atividade se reconhece dessa forma. Mas, particularmente, acho que a única forma honesta de praticar design, fazê-lo, trabalhá-lo, é o questionando. O design só pode ser mais se entendermos que ele é menos e, deixando de lado certos paradigmas, propormos todos os desvios abruptos, rebeldes, conflitantes e necessários para derrubar essa construção institucionalizada e sisuda de uma profissão que não permite uma prática franca e honesta dessa atividade, porque se se abrir demais, reconhece que nunca existiu e que não passa de uma tentativa frustrada de refletir e materializar uma ideia que não consegue.

Por fim, tenho a leve impressão de que só seremos capazes de dar vida ao Design quando tomarmos coragem para matá-lo. Longa vida ao anti-design.

god

 

Indico:

Rob Batista

Rob Batista

Rob Batista, aka Robin Hood, é paulista e estudante de Design Digital pela Universidade Anhembi Morumbi. Se encontra (e se perde) em Artes Visuais, Antropologia, Filosofia, Ficção Científica, entre outras coisas, e vê no design o poder de (des)construir o mundo. Suas pesquisas, observações e toda a bobagem que fala são muito menos o desejo de explicar e muito mais a tentativa de entender.

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A morte do design como sua única possibilidade

Por Rob Batista

Embora eu não me  entregue completamente ao tal Design Thinking e tenha algumas objeções, vejo aí algumas contribuições muito importantes para o design e para a sociedade. Design Thinking, a grosso modo, seria a “forma de pensar do designer” aplicada a outras áreas. Não vou me debruçar sobre questões relacionadas ao tema, que já foi longamente discutido em vários posts e publicações, como no AntiCast. Mas suscito essa abordagem para provocar alguns questionamentos que nos levam a outras questões.

Se há um modo de pensar, projetar, realizar, onde termina o designer e começa o design thinker, o que os diferencia? O suporte material de trabalho? O produto ou resultado desse trabalho? A técnica? Pois se é o modo projetual ou processual de pensar que torna alguém um “designer de sapatos” e não um “fazedor de sapatos”, então qual o problema que existe em dizer “designer de unhas”, desde que se aproprie desses mesmos processos de design nessa atividade? Ok, antes de me apedrejarem, vamos adiante. Consideremos que seja um sacrilégio dizer que existe “designer de unhas”, mesmo se tivesse os mesmos processos projetuais aplicados. Diante disso, insisto: o que, então, torna alguém um designer? Só nos resta considerar que existe um rol de elementos materiais que suportam a prática da atividade. A partir daí, podemos julgar quem é ou não é designer. Aplique o que você chama de “modo de projetar do designer”. Projete um cartaz: parabéns, você é um designer gráfico. Projete um copo, e então você é um designer de produto. Projete agora as propriedades formais e funcionais (sejam lá quais fossem) de uma unha para determinada finalidade. Waaait! Não tem unha na lista, não pode. É blasfêmia!

thinker

Não estou tentando dizer se existe ou não designer de unha, isso não é defesa, nem acusação. Apenas questiono quem propõe limitações baseadas em um olhar extremamente conservador, ou limita o design à uma série de elementos e suportes materiais sem nunca apresentar argumentos plausíveis para isso. “Design é isso, é assim, pronto e acabou”.

Uma outra abordagem ou vertente bastante polêmica que ajuda a fundamentar a necessidade desses questionamentos é o Design de Serviços. Sei que nesse momento a Ordem Universal dos Cavaleiros Protetores do Design Conservador virá com sete espadas me dizer que isso também não existe, mas vamos lá. Há um tempo atrás fui a uma palestra que derrubou uma série de preconceitos meus. Em várias situações, continuo vendo no apelo, geralmente comercial, do Design Thinking e do Service Design apenas uma nova plástica e novos nomes para o velho Marketing. Apesar disso, achei muito interessante a teoria do Design de Serviços exposta pelo palestrante. Segundo ele, não se trata de um novo design, mas de uma nova abordagem. Enquanto antigamente se projetava propriedades formais e funcionais, hoje se projeta uma realização ou serviço, mesmo quando um produto material está envolvido. O produto (como um copo ou uma caneta) é um mero avatar materializador de um serviço que ele presta. O material pode continuar presente, mas é o intangível que é realmente projetado. Não existe cartaz, nem copo, nem cadeira. Existe uma ideia que se projeta como corpo material para determinado propósito.

“Não tente entortar (ou projetar) a colher. É impossível... A colher não existe”

“Não tente entortar (ou projetar) a colher. É impossível… A colher não existe”

Sendo assim, uma lista de elementos materiais não pode dizer quem é ou não é designer, pelo contrário, seguindo essa lógica, é o processo nascido de um projeto imaterial, ideal, que determina se está mais próximo do design ou não (vide a diferença do designer e do fazedor de sapatos). Considerando isso, cai por terra qualquer hipótese para o mimimi bobo de quem tenta delimitar quase que cientificamente quem é designer ou não pelo material tangível com que trabalha.

Tudo isso só reforça uma coisa: para se afirmar, a profissão do design pautada exaustivamente apenas em questões materiais (como qualquer outra inserida neste modelo sócio-econômico) tenta se limitar demasiadamente e, talvez assim, se afaste ainda mais do que poderia ser considerado o design em essência ideal. Para “ser design”, a profissão se afasta do próprio Design e se configura como uma tentativa profundamente frustrada e miseravelmente fracassada de ser algo maior. O resultado disso é o seguinte: o design (com “d” minúsculo) não é capaz de ser nem uma ficção (talvez a única verdade em um mundo de ficções). Muito abaixo disso, a profissão do design é uma farsa que, paradoxalmente e de modo contrário ao seu próprio intento natural, só se afirma quando nega o próprio Design, ou seja, o design menor (que luta para afirmar seu reinado), só será útil se morrer e deixar espaço para o Design que não precisa lutar para afirmar nada, que não depende dos contornos de uma profissão, e que apenas existe.

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É claro que é impossível entender isso se não reconhecer que não existe uma coisa entendida universal e unanimemente como design. Entre várias abordagens, vejo duas que se tornam pontos convergentes para várias outras. Uma é o design verbo (na língua inglesa), expressão de uma atividade humana, de um agir. Sim, para a alegria de muitos, falo daquele design que nasceu na Revolução Industrial. Nascia então o “design submetido ao designer”, o que só existe quando há uma ação humana e que se configura pela realização ativa de certas competências, habilidades e técnicas, reunidas na prática de um indivíduo, e com determinadas finalidades.

A outra abordagem, que a cada dia ganha mais espaço, é o Design enquanto substantivo, coisa em sí, como projeto, processo ou disposição, articulação dos elementos constituintes de algo, que também responde a necessidades de um sistema ou conjunto de coisas, mas que existe em sí e não precisa necessariamente de atividade humana. É o Design do qual fala Luigi Colani, por exemplo. Essa abordagem dá o nome “design” à uma concepção de projeto, uma ideia, que nem sempre depende ou resulta da ação humana, mas é anterior à ela, pois já estaria presente na natureza e em tudo de onde aprendemos quaisquer formas de organização “consciente de sí”. Sendo assim, o design como concepção organizacional de projeto não pode ter nascido na Revolução Industrial, e, caso não fosse anterior à ela, talvez não fosse nem possível surgir a própria atividade como prática de um indivíduo naquele período, pois a reunião daquelas competências todas precisariam, nessa lógica, de uma concepção ideal a partir da qual se materializaria. Está aí o Design com “D” maiúsculo. Que fique claro, não vejo isso como a “abordagem mais correta”, mas entendo que seja fundamental para contribuir com uma melhor compreensão do que é, ou poderia ser, design, mesmo que se quebrem paradigmas aos quais nos apegamos com fervor.

A natureza ainda é o melhor designer que conheço – Luigi Colani

É evidente que o questionamento faz desmoronar muitas bases pregadas como sólidas e que estruturaram essa profissão desde que a atividade se reconhece dessa forma. Mas, particularmente, acho que a única forma honesta de praticar design, fazê-lo, trabalhá-lo, é o questionando. O design só pode ser mais se entendermos que ele é menos e, deixando de lado certos paradigmas, propormos todos os desvios abruptos, rebeldes, conflitantes e necessários para derrubar essa construção institucionalizada e sisuda de uma profissão que não permite uma prática franca e honesta dessa atividade, porque se se abrir demais, reconhece que nunca existiu e que não passa de uma tentativa frustrada de refletir e materializar uma ideia que não consegue.

Por fim, tenho a leve impressão de que só seremos capazes de dar vida ao Design quando tomarmos coragem para matá-lo. Longa vida ao anti-design.

god

 

Indico:

Rob Batista

Rob Batista

Rob Batista, aka Robin Hood, é paulista e estudante de Design Digital pela Universidade Anhembi Morumbi. Se encontra (e se perde) em Artes Visuais, Antropologia, Filosofia, Ficção Científica, entre outras coisas, e vê no design o poder de (des)construir o mundo. Suas pesquisas, observações e toda a bobagem que fala são muito menos o desejo de explicar e muito mais a tentativa de entender.

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