Dilemas do Design IV: sinal x significado

Por Marcos Beccari

Encerrei meu último post tentando explicitar que a relação binária do sinal x significado não nos esclarece como e por que um objeto ou uma imagem indica estritamente alguma coisa ou alguma ideia (ao invés de outra coisa ou outra ideia). Mas me parece que, em última instância, essa indicação nunca é totalmente estrita e, somente por isso, o design é possível.

Por exemplo: quando compramos um instrumento musical (um violão, uma flauta), conseguimos executar seus diversos mecanismos porque o designer que projetou tal instrumento baseou-se em funções que suspostamente já conhecemos (se fôssemos músicos), em ideias que já possuímos, em uma linguagem comum e em valores preestabelecidos.

Porém, na medida em que utilizamos este novo instrumento, nossa relação com ele pode adquirir um significado diferente daquele com o qual estávamos habituados a ter com outros instrumentos, sendo que desta nova relação podem surgir novas formas de composição musical.

Um “modo de olhar” foi criado e enxergamos através dele, com a possibilidade de ampliá-lo, eventualmente pelas mãos do designer. Como isso é possível? Como os objetos e imagens poderiam oferecer um modo de olhar, uma dimensão mais ampla, se eles fossem somente sinais para indicar significados preexistentes?

A retórica da pergunta já esconde a resposta em seu enunciado: os designers destes objetos e imagens, além de referirem a significações, também inventam e reconfiguram novas formas de significação. É este último aspecto que caracteriza aquilo que me parece ser um “projetar filosófico”, o nosso “olho parietal” nos termos de Flusser (mencionado no último post).

Não se trata necessariamente de propor ideias novas, configurações inéditas ou discursos “inovadores”. Antes disso, o designer tem a capacidade especial de nos fazer pensar enquanto lidamos com um objeto de design, de nos levar a compreender melhor nossos próprios pensamentos e experiências tanto quanto os de outras pessoas.

É como se o músico que adquiriu nosso violão ou flauta dissesse “eu nunca tinha pensado em tocar assim!”, ou então “agora, com este instrumento, eu entendo melhor uma ideia ou experiência que eu tinha, mas que não entendia muito bem”, ou ainda “finalmente compreendi uma coisa que eu já sabia, mas não sabia que sabia”.

Os designers nos fazem pensar e nos dão o que pensar porque trabalham com experiências e significados (tanto os já conhecidos por outros quanto os já conhecidos por nós), bem como nos oferecem experiências e significados que não conhecíamos e que descobrimos por estarmos lidando com este ou aquele produto desenvolvido.

Temos assim uma dinâmica de expansão da realidade subjetiva por intermédio do Design: ao trabalharmos com experiências e significados velhos para descobrirmos experiências e significados novos, não apenas estamos nos comunicando e nos relacionando com os outros, mas necessariamente estamos ampliando a comunicação e as redes de significado.

Isso somente é possível porque temos a capacidade humana de suscitar significações, de evocar situações e circunstâncias, de imaginar e conceber configurações diversas a tudo que nos cerca. Consequentemente, acredito que todo ser humano é, potencialmente, designer. O Design, em sentido amplo (isto é, não somente enquanto atividade profissional ou campo de pesquisa), é uma dimensão de nossa experiência total de seres humanos que vivem no mundo e em sociedade, é uma singularidade humana que ultrapassa a dicotomia sinal x significado.

Um indivíduo não está sendo designer quando simplesmente traduz ou representa a realidade, mas quando a realiza, interpretando e recriando seus significados. Somos designers quando participamos ativamente da experiência da realidade, quando o mundo social encarna, através dos objetos e imagens por nós produzidos, nosso mundo individual e vice-versa.

Marcos Beccari

Marcos Beccari

Doutorando em Educação na USP, designer gráfico e mestre em Design pela UFPR. Professor substituto no curso de Bacharelado em Design Gráfico na UFPR. Interessa-se por Filosofia, Psicologia e Comunicação, o que o levou a pesquisar sobre Filosofia do Design e a encarar o design como articulação simbólica na mediação ficcional que organiza o real. Além de atuar como professor e pesquisador, coordena o blog Filosofia do Design, integra o podcast AntiCast, é membro do projeto "Cinema e Educação: tela, espelho e janela" (USP-Fapesp) e colabora com outros blogs/revistas de design e comunicação.

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Encerrei meu último post tentando explicitar que a relação binária do sinal x significado não nos esclarece como e por que um objeto ou uma imagem indica estritamente alguma coisa ou alguma ideia (ao invés de outra coisa ou outra ideia). Mas me parece que, em última instância, essa indicação nunca é totalmente estrita e, somente por isso, o design é possível.

Por exemplo: quando compramos um instrumento musical (um violão, uma flauta), conseguimos executar seus diversos mecanismos porque o designer que projetou tal instrumento baseou-se em funções que suspostamente já conhecemos (se fôssemos músicos), em ideias que já possuímos, em uma linguagem comum e em valores preestabelecidos.

Porém, na medida em que utilizamos este novo instrumento, nossa relação com ele pode adquirir um significado diferente daquele com o qual estávamos habituados a ter com outros instrumentos, sendo que desta nova relação podem surgir novas formas de composição musical.

Um “modo de olhar” foi criado e enxergamos através dele, com a possibilidade de ampliá-lo, eventualmente pelas mãos do designer. Como isso é possível? Como os objetos e imagens poderiam oferecer um modo de olhar, uma dimensão mais ampla, se eles fossem somente sinais para indicar significados preexistentes?

A retórica da pergunta já esconde a resposta em seu enunciado: os designers destes objetos e imagens, além de referirem a significações, também inventam e reconfiguram novas formas de significação. É este último aspecto que caracteriza aquilo que me parece ser um “projetar filosófico”, o nosso “olho parietal” nos termos de Flusser (mencionado no último post).

Não se trata necessariamente de propor ideias novas, configurações inéditas ou discursos “inovadores”. Antes disso, o designer tem a capacidade especial de nos fazer pensar enquanto lidamos com um objeto de design, de nos levar a compreender melhor nossos próprios pensamentos e experiências tanto quanto os de outras pessoas.

É como se o músico que adquiriu nosso violão ou flauta dissesse “eu nunca tinha pensado em tocar assim!”, ou então “agora, com este instrumento, eu entendo melhor uma ideia ou experiência que eu tinha, mas que não entendia muito bem”, ou ainda “finalmente compreendi uma coisa que eu já sabia, mas não sabia que sabia”.

Os designers nos fazem pensar e nos dão o que pensar porque trabalham com experiências e significados (tanto os já conhecidos por outros quanto os já conhecidos por nós), bem como nos oferecem experiências e significados que não conhecíamos e que descobrimos por estarmos lidando com este ou aquele produto desenvolvido.

Temos assim uma dinâmica de expansão da realidade subjetiva por intermédio do Design: ao trabalharmos com experiências e significados velhos para descobrirmos experiências e significados novos, não apenas estamos nos comunicando e nos relacionando com os outros, mas necessariamente estamos ampliando a comunicação e as redes de significado.

Isso somente é possível porque temos a capacidade humana de suscitar significações, de evocar situações e circunstâncias, de imaginar e conceber configurações diversas a tudo que nos cerca. Consequentemente, acredito que todo ser humano é, potencialmente, designer. O Design, em sentido amplo (isto é, não somente enquanto atividade profissional ou campo de pesquisa), é uma dimensão de nossa experiência total de seres humanos que vivem no mundo e em sociedade, é uma singularidade humana que ultrapassa a dicotomia sinal x significado.

Um indivíduo não está sendo designer quando simplesmente traduz ou representa a realidade, mas quando a realiza, interpretando e recriando seus significados. Somos designers quando participamos ativamente da experiência da realidade, quando o mundo social encarna, através dos objetos e imagens por nós produzidos, nosso mundo individual e vice-versa.

Marcos Beccari

Marcos Beccari

Doutorando em Educação na USP, designer gráfico e mestre em Design pela UFPR. Professor substituto no curso de Bacharelado em Design Gráfico na UFPR. Interessa-se por Filosofia, Psicologia e Comunicação, o que o levou a pesquisar sobre Filosofia do Design e a encarar o design como articulação simbólica na mediação ficcional que organiza o real. Além de atuar como professor e pesquisador, coordena o blog Filosofia do Design, integra o podcast AntiCast, é membro do projeto "Cinema e Educação: tela, espelho e janela" (USP-Fapesp) e colabora com outros blogs/revistas de design e comunicação.

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