Mr. Nobody e o pêndulo tautológico da interpretação

Por Marcos Beccari

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Questionei uma garotinha de seis anos o que ela queria ser quando crescer. A resposta foi “atriz”. Por quê? Explicou-me que uma atriz pode fingir ser qualquer pessoa. Mas então uma atriz deixa de ser ela mesma quando ela trabalha? Mais ou menos, esclareceu-me, porque a pessoa que a atriz finge ser é um pouco ela mesma e também um pouco as pessoas que assistem a seu espetáculo. Continuou confessando-me que gosta de fingir ser outras pessoas. Retribui dizendo que talvez eu seja mais “eu mesmo” quando finjo ser outra pessoa. Então ela me perguntou, mudando de assunto, se eu tinha medo de morrer. Respondi com outra pergunta: você tinha medo quando você ainda nem havia nascido? Ela riu e disse que não dá pra saber o que ela sentia antes de nascer. Pois é, prossegui, meu medo não é de morrer, mas de saber que eu morri.

A menina ficou confusa e foi embora. Não havia o que explicar, qualquer tentativa seria tautológica: compreender a si mesmo é compreender-se diante de uma narrativa sobre si mesmo, assim como compreender a vida é compreender o que está diante da própria vida. “Diante” no sentido de que não há nada antes, depois, fora ou por trás da vida (e de si mesmo) a ser desvendado, descoberto ou revelado. E “tautológico” porque tal interpretação não muda em nada a coisa interpretada, isto é, as pessoas continuam vivendo cada qual à sua maneira. A única coisa que pode mudar é cada interpretação em si, uma vez que a vida não se reduz à interpretação que temos dela, mas esta se alimenta daquela e a modifica. Não que a vida em si seja incompleta, pelo contrário, é nossa interpretação sobre ela que permanece insuficiente por tentar “acomodá-la” com sentidos que não lhe dizem respeito. E a gente continua interpretando assim mesmo.

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Não é ilusório, é o único procedimento que temos. Ilusório é denunciar todo e qualquer discurso, engajado ou desinteressado, em nome de uma visão mais autêntica ou sincera de como as coisas “realmente são”. Opor a vida aos discursos que a regulam e a legitimam é também uma tentativa de regulação da vida, o que significa considerá-la insuficiente em si mesma, implicando então algum princípio de suficiência para o qual tudo deveria estar subjugado. Quer dizer, nada nos impede de chamar de “vida” este resto através do qual este ou aquele discurso assinala sua suficiência ou insuficiência sobre os recursos do dizer. Sabemos o que é a vida, afinal ela abrange tanto nossas interpretações quanto nossas ilusões sobre ela; o que não sabemos é o que ela não é.

Que diferença isso faz? Quando denunciamos uma visão de mundo, pressupomos que essa visão diz respeito àquilo que a vida não é. No entanto, se tudo que percebemos, pensamos e sentimos já se insere em nossa vida, não há como falarmos sobre o que não é a vida sem que isso se contradiga de imediato. Por exemplo, a clássica e iconoclasta separação entre virtual e real baseia-se na premissa de que nem um nem o outro serve de referência segura, como se um romance ou um filme nunca conseguisse alcançar o mundo “em si mesmo” e vice-versa. Mas por que uma ficção não alcançaria nada além dela mesma, se é por meio dela que propomos um discurso para a vida, que instauramos mais um sentido possível no espaço concreto de tudo que já existe?

Uma resposta interessante poderia ser extraída do filme Mr. Nobody (Jaco Van Dormael, 2009). Em uma época de seres humanos imortais, o protagonista Nemo Nobody é o último dos mortais e sua memória “primitiva” é objeto de estudo e curiosidade popular. Acontece que Nemo descreve uma miríade de versões diferentes e contraditórias entre si, como se ele tivesse vivido todas as possibilidades para cada decisão que ele tomou ou deixou de tomar no passado. A interpretação mais pragmática é que esta memória confusa é resultado da incapacidade de Nemo em tomar decisões – no fim do filme, ele comenta com um jornalista que ambos (ele e o jornalista) não existem, pois estão na mente de uma criança (o próprio Nemo) que está sendo forçada a fazer uma escolha impossível: partir com a mãe ou permanecer com o pai depois de uma separação.

Minha interpretação é outra: aquilo que parece confuso em sua memória é expressão de sua singular capacidade de escolher todas as possibilidades. Como ele faz isso? Escolhendo não saber o que de fato foi escolhido. E na medida em que não se sabe, todas as possibilidades são escolhidas. Trata-se de um ato radical de interpretação: fingir o que poderia ter sido sem se preocupar com o que de fato foi. Fingir não como um pretexto previamente pensado e sim como orientação incontornável ao pensamento. Mas perder de vista o que de fato aconteceu não seria uma forma de negar a realidade, um consolo ilusório para um passado inconsolável?

Não vejo nada sendo negado ou consolado nessa história. As “escolhas impossíveis” que permeiam o enredo não indicam que o protagonista nunca escolheu nada, como se ele ainda estivesse preso a antigos dilemas que turvariam sua memória. Pelo contrário, a impossibilidade da escolha implica um lúcido reconhecimento de que não havia um caminho “certo” a ser tomado e que, portanto, qualquer caminho seria válido. Tal lucidez mantém-se assegurada não somente pela riqueza e profundidade dos detalhes rememorados, mas antes pela questão: que importa se tomei este ou aquele caminho? É como se Nemo Nobody dissesse: cada escolha impossível me permite compreender a mim mesmo, não porque ela diz quem eu fui a partir da decisão que eu tomei, mas porque dialoga com quem eu sou atualmente, interferindo em minha interpretação do mundo ao propor-se sempre de maneira diferente. Negação seria se houvesse um caminho ideal em que tudo daria certo. Ocorre que, no entanto, cada versão da história interfere nas demais.

Este detalhe aparentemente fantasioso nada mais é do que afirmação da escolha impossível não mais como uma não-escolha (negação sistemática de qualquer outra escolha possível) e sim como uma escolha que traz em si um pouco de todas as demais possíveis. Não podemos compreender o todo sem compreender suas partes e vice-versa: cada versão da história é uma manifestação de uma história total, mais ampla, não redutível a memórias e escolhas pontuais. Trata-se de um procedimento que não privilegia uma suposta “verdade” da história sem, contudo, desistir de interpretá-la. Algo semelhante ao círculo hermenêutico proposto por Paul Ricoeur:

“…o que deve ser interpretado, num texto, é uma proposição de mundo, de um mundo tal como posso habitá-lo para nele projetar um de meus possíveis mais próprios. É o que chamo de o mundo do texto, o mundo próprio a este texto único” (RICOEUR, P. Hermenêutica e Ideologias. Rio de Janeiro: Vozes, 2008, p. 66).

O plano da composição do filme é fundamental para a compreensão dessa dinâmica interpretativa: as reflexões do Nemo criança justificam-se nas reflexões do Nemo adulto e do Nemo idoso, não havendo no fluxo de pensamento um momento anterior nem posterior, apenas um movimento pendular (metaforizado na técnica de hipnose utilizada no filme pelo psiquiatra) que coloca sob suspeita qualquer veredicto definitivo. Interessante é que somos induzidos em cada cena do filme (sobretudo naquelas em que Nemo atua como apresentador de TV, falando sobre o universo e a física quântica) a tentar reconhecer alguma ordem, uma finalidade, uma Vontade no sentido schopenhaueriano que movimente todos os “cacos” de sentido espalhados pela memória de Nemo. Entretanto, o fim do filme é contundente: não há princípio algum, nenhuma razão ou vontade ordenadora, não há sequer escolhas a serem feitas exceto aquela de aceitar e afirmar o eterno retorno dos mesmos impasses. Em outras palavras:

“…se todas as possibilidade na ordem e relação das forças já não estivessem esgotadas, não teria passado ainda nenhuma infinidade. Justamente porque isto tem de ser, não há mais nenhuma possibilidade nova e é necessário que tudo já tenha estado aí, inúmeras vezes” (NIETZSCHE, F. Humano, demasiado humano.  São Paulo: Abril Cultural, 1983, p. 387.)

Tal perspectiva retoma a visão dos céticos em oposição à filosofia platonista, que se constitui a partir do axioma da verdade. Quando questionado pelo jornalista sobre qual de seus depoimentos é o “verdadeiro”, Nemo responde que todos são verdadeiros, já que “everything could’ve been anything else and it would have just as much meaning”. Claro que, a rigor, esse tipo de narrativa enuncia-se como absurda, mas a questão é: de que lado está o absurdo? Numa história cujo sentido é plural ou num indivíduo que vê sua expectativa de sentido frustrada? Sendo que tal indivíduo, evidentemente, refere-se mais ao expectador do filme do que ao seu protagonista, que prefere continuar na mente de uma criança para manter por perto todos os sentidos possíveis.

Creio que o absurdo aparece “refletido” na trama pela experiência do acaso: a chuva que borra o telefone anotado no papel, a moeda que o leva a ser assassinado por engano, o caminhão de gasolina que explode na sua frente etc. É o acaso que se repete, indiferente ao que quer que seja. Quando certos princípios como efeito borboleta ou teoria das supercordas são mencionados, nossa interpretação é atiçada por iscas de sentido que nunca dão conta de fixar e mapear as circunstâncias que se abrem ao acaso. Mas da constatação da fatalidade do acaso – optar pela mortalidade em um mundo de imortais é afirmar a falta de razão preexistente à existência, bem como uma finalidade para ela – segue-se para o riso de escárnio e de alegria como resposta à altura do absurdo que torna possíveis as circunstâncias e ocorrências.

Não há fora nem dentro, conspiração ou sua ausência; todos os fatos e possibilidades se igualam e respondem a uma mesma condição: serem interpretados apesar de não serem interpretáveis. Se qualquer acontecimento poderia ter qualquer significado, não é porque não aconteceu, mas porque nunca houve um significado que o tenha determinado. Se não há significado, não é interpretável, mas interpretamos assim mesmo. O que interpretamos é indiferente à nossa interpretação, mas tal interpretação é a única coisa que temos – a linguagem, o conhecimento, as ideologias, os discursos, a arte, o design etc. Daí quando alguém fala sobre, por exemplo, uma conduta alienatória pautada pelo cinismo (afirmação de qualquer sentido), sempre resta a pergunta: qual o referencial que define a alienação e a emancipação?

E no fim sempre chegamos a algo como: quais os parâmetros que definem o viver? Aqueles regulados por instituições, teorias, convenções de toda ordem. Só que tais parâmetros são arbitrários e redefiníveis – a gente os redefine vivendo. Com efeito, não há uma versão definitiva do passado, inventamos e confundimos lembranças que são tão “nossas” quanto poderiam ser de qualquer pessoa. O fascinante, enfim, não é saber quem já fomos um dia ou quem nos tornamos hoje, mas não fazer ideia de quem seremos amanhã ou nos próximos minutos, de como as coisas vão passar, para onde vão ou de que modo – antes que elas comecem a acontecer.

Porém tenho a impressão de que, embora ainda não tenhamos alcançado a imortalidade, o tempo de Nemo Nobody está se perdendo. Parece difícil retomar escolhas impossíveis em um fluxo de obrigações que prima por não nos deixar sair do presente, uma rotina previsível em sua gramática. Encontro-me entre aqueles que já não sabem de si enquanto protagonistas de suas pequenas histórias, verdadeiras ou falsas, porque não nos resta mais narrativa além do trabalho/profissão que já define de antemão quem somos ou deveríamos ser, engolindo e silenciando qualquer outra possibilidade. Aprendemos a tomar decisões porque tudo deve ser planejado, resolvido, contabilizado, perdoado e esquecido o mais rápido possível. Acho que desaprendemos a escolha pela não-escolha, aquela de uma criança que pode fingir ser qualquer pessoa do mundo.

O poeta é um fingidor.
Finge tão perfeitamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.
Autopsicografia – Fernando Pessoa

Marcos Beccari

Marcos Beccari

Doutorando em Educação na USP, designer gráfico e mestre em Design pela UFPR. Professor substituto no curso de Bacharelado em Design Gráfico na UFPR. Interessa-se por Filosofia, Psicologia e Comunicação, o que o levou a pesquisar sobre Filosofia do Design e a encarar o design como articulação simbólica na mediação ficcional que organiza o real. Além de atuar como professor e pesquisador, coordena o blog Filosofia do Design, integra o podcast AntiCast, é membro do projeto "Cinema e Educação: tela, espelho e janela" (USP-Fapesp) e colabora com outros blogs/revistas de design e comunicação.

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Questionei uma garotinha de seis anos o que ela queria ser quando crescer. A resposta foi “atriz”. Por quê? Explicou-me que uma atriz pode fingir ser qualquer pessoa. Mas então uma atriz deixa de ser ela mesma quando ela trabalha? Mais ou menos, esclareceu-me, porque a pessoa que a atriz finge ser é um pouco ela mesma e também um pouco as pessoas que assistem a seu espetáculo. Continuou confessando-me que gosta de fingir ser outras pessoas. Retribui dizendo que talvez eu seja mais “eu mesmo” quando finjo ser outra pessoa. Então ela me perguntou, mudando de assunto, se eu tinha medo de morrer. Respondi com outra pergunta: você tinha medo quando você ainda nem havia nascido? Ela riu e disse que não dá pra saber o que ela sentia antes de nascer. Pois é, prossegui, meu medo não é de morrer, mas de saber que eu morri.

A menina ficou confusa e foi embora. Não havia o que explicar, qualquer tentativa seria tautológica: compreender a si mesmo é compreender-se diante de uma narrativa sobre si mesmo, assim como compreender a vida é compreender o que está diante da própria vida. “Diante” no sentido de que não há nada antes, depois, fora ou por trás da vida (e de si mesmo) a ser desvendado, descoberto ou revelado. E “tautológico” porque tal interpretação não muda em nada a coisa interpretada, isto é, as pessoas continuam vivendo cada qual à sua maneira. A única coisa que pode mudar é cada interpretação em si, uma vez que a vida não se reduz à interpretação que temos dela, mas esta se alimenta daquela e a modifica. Não que a vida em si seja incompleta, pelo contrário, é nossa interpretação sobre ela que permanece insuficiente por tentar “acomodá-la” com sentidos que não lhe dizem respeito. E a gente continua interpretando assim mesmo.

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Não é ilusório, é o único procedimento que temos. Ilusório é denunciar todo e qualquer discurso, engajado ou desinteressado, em nome de uma visão mais autêntica ou sincera de como as coisas “realmente são”. Opor a vida aos discursos que a regulam e a legitimam é também uma tentativa de regulação da vida, o que significa considerá-la insuficiente em si mesma, implicando então algum princípio de suficiência para o qual tudo deveria estar subjugado. Quer dizer, nada nos impede de chamar de “vida” este resto através do qual este ou aquele discurso assinala sua suficiência ou insuficiência sobre os recursos do dizer. Sabemos o que é a vida, afinal ela abrange tanto nossas interpretações quanto nossas ilusões sobre ela; o que não sabemos é o que ela não é.

Que diferença isso faz? Quando denunciamos uma visão de mundo, pressupomos que essa visão diz respeito àquilo que a vida não é. No entanto, se tudo que percebemos, pensamos e sentimos já se insere em nossa vida, não há como falarmos sobre o que não é a vida sem que isso se contradiga de imediato. Por exemplo, a clássica e iconoclasta separação entre virtual e real baseia-se na premissa de que nem um nem o outro serve de referência segura, como se um romance ou um filme nunca conseguisse alcançar o mundo “em si mesmo” e vice-versa. Mas por que uma ficção não alcançaria nada além dela mesma, se é por meio dela que propomos um discurso para a vida, que instauramos mais um sentido possível no espaço concreto de tudo que já existe?

Uma resposta interessante poderia ser extraída do filme Mr. Nobody (Jaco Van Dormael, 2009). Em uma época de seres humanos imortais, o protagonista Nemo Nobody é o último dos mortais e sua memória “primitiva” é objeto de estudo e curiosidade popular. Acontece que Nemo descreve uma miríade de versões diferentes e contraditórias entre si, como se ele tivesse vivido todas as possibilidades para cada decisão que ele tomou ou deixou de tomar no passado. A interpretação mais pragmática é que esta memória confusa é resultado da incapacidade de Nemo em tomar decisões – no fim do filme, ele comenta com um jornalista que ambos (ele e o jornalista) não existem, pois estão na mente de uma criança (o próprio Nemo) que está sendo forçada a fazer uma escolha impossível: partir com a mãe ou permanecer com o pai depois de uma separação.

Minha interpretação é outra: aquilo que parece confuso em sua memória é expressão de sua singular capacidade de escolher todas as possibilidades. Como ele faz isso? Escolhendo não saber o que de fato foi escolhido. E na medida em que não se sabe, todas as possibilidades são escolhidas. Trata-se de um ato radical de interpretação: fingir o que poderia ter sido sem se preocupar com o que de fato foi. Fingir não como um pretexto previamente pensado e sim como orientação incontornável ao pensamento. Mas perder de vista o que de fato aconteceu não seria uma forma de negar a realidade, um consolo ilusório para um passado inconsolável?

Não vejo nada sendo negado ou consolado nessa história. As “escolhas impossíveis” que permeiam o enredo não indicam que o protagonista nunca escolheu nada, como se ele ainda estivesse preso a antigos dilemas que turvariam sua memória. Pelo contrário, a impossibilidade da escolha implica um lúcido reconhecimento de que não havia um caminho “certo” a ser tomado e que, portanto, qualquer caminho seria válido. Tal lucidez mantém-se assegurada não somente pela riqueza e profundidade dos detalhes rememorados, mas antes pela questão: que importa se tomei este ou aquele caminho? É como se Nemo Nobody dissesse: cada escolha impossível me permite compreender a mim mesmo, não porque ela diz quem eu fui a partir da decisão que eu tomei, mas porque dialoga com quem eu sou atualmente, interferindo em minha interpretação do mundo ao propor-se sempre de maneira diferente. Negação seria se houvesse um caminho ideal em que tudo daria certo. Ocorre que, no entanto, cada versão da história interfere nas demais.

Este detalhe aparentemente fantasioso nada mais é do que afirmação da escolha impossível não mais como uma não-escolha (negação sistemática de qualquer outra escolha possível) e sim como uma escolha que traz em si um pouco de todas as demais possíveis. Não podemos compreender o todo sem compreender suas partes e vice-versa: cada versão da história é uma manifestação de uma história total, mais ampla, não redutível a memórias e escolhas pontuais. Trata-se de um procedimento que não privilegia uma suposta “verdade” da história sem, contudo, desistir de interpretá-la. Algo semelhante ao círculo hermenêutico proposto por Paul Ricoeur:

“…o que deve ser interpretado, num texto, é uma proposição de mundo, de um mundo tal como posso habitá-lo para nele projetar um de meus possíveis mais próprios. É o que chamo de o mundo do texto, o mundo próprio a este texto único” (RICOEUR, P. Hermenêutica e Ideologias. Rio de Janeiro: Vozes, 2008, p. 66).

O plano da composição do filme é fundamental para a compreensão dessa dinâmica interpretativa: as reflexões do Nemo criança justificam-se nas reflexões do Nemo adulto e do Nemo idoso, não havendo no fluxo de pensamento um momento anterior nem posterior, apenas um movimento pendular (metaforizado na técnica de hipnose utilizada no filme pelo psiquiatra) que coloca sob suspeita qualquer veredicto definitivo. Interessante é que somos induzidos em cada cena do filme (sobretudo naquelas em que Nemo atua como apresentador de TV, falando sobre o universo e a física quântica) a tentar reconhecer alguma ordem, uma finalidade, uma Vontade no sentido schopenhaueriano que movimente todos os “cacos” de sentido espalhados pela memória de Nemo. Entretanto, o fim do filme é contundente: não há princípio algum, nenhuma razão ou vontade ordenadora, não há sequer escolhas a serem feitas exceto aquela de aceitar e afirmar o eterno retorno dos mesmos impasses. Em outras palavras:

“…se todas as possibilidade na ordem e relação das forças já não estivessem esgotadas, não teria passado ainda nenhuma infinidade. Justamente porque isto tem de ser, não há mais nenhuma possibilidade nova e é necessário que tudo já tenha estado aí, inúmeras vezes” (NIETZSCHE, F. Humano, demasiado humano.  São Paulo: Abril Cultural, 1983, p. 387.)

Tal perspectiva retoma a visão dos céticos em oposição à filosofia platonista, que se constitui a partir do axioma da verdade. Quando questionado pelo jornalista sobre qual de seus depoimentos é o “verdadeiro”, Nemo responde que todos são verdadeiros, já que “everything could’ve been anything else and it would have just as much meaning”. Claro que, a rigor, esse tipo de narrativa enuncia-se como absurda, mas a questão é: de que lado está o absurdo? Numa história cujo sentido é plural ou num indivíduo que vê sua expectativa de sentido frustrada? Sendo que tal indivíduo, evidentemente, refere-se mais ao expectador do filme do que ao seu protagonista, que prefere continuar na mente de uma criança para manter por perto todos os sentidos possíveis.

Creio que o absurdo aparece “refletido” na trama pela experiência do acaso: a chuva que borra o telefone anotado no papel, a moeda que o leva a ser assassinado por engano, o caminhão de gasolina que explode na sua frente etc. É o acaso que se repete, indiferente ao que quer que seja. Quando certos princípios como efeito borboleta ou teoria das supercordas são mencionados, nossa interpretação é atiçada por iscas de sentido que nunca dão conta de fixar e mapear as circunstâncias que se abrem ao acaso. Mas da constatação da fatalidade do acaso – optar pela mortalidade em um mundo de imortais é afirmar a falta de razão preexistente à existência, bem como uma finalidade para ela – segue-se para o riso de escárnio e de alegria como resposta à altura do absurdo que torna possíveis as circunstâncias e ocorrências.

Não há fora nem dentro, conspiração ou sua ausência; todos os fatos e possibilidades se igualam e respondem a uma mesma condição: serem interpretados apesar de não serem interpretáveis. Se qualquer acontecimento poderia ter qualquer significado, não é porque não aconteceu, mas porque nunca houve um significado que o tenha determinado. Se não há significado, não é interpretável, mas interpretamos assim mesmo. O que interpretamos é indiferente à nossa interpretação, mas tal interpretação é a única coisa que temos – a linguagem, o conhecimento, as ideologias, os discursos, a arte, o design etc. Daí quando alguém fala sobre, por exemplo, uma conduta alienatória pautada pelo cinismo (afirmação de qualquer sentido), sempre resta a pergunta: qual o referencial que define a alienação e a emancipação?

E no fim sempre chegamos a algo como: quais os parâmetros que definem o viver? Aqueles regulados por instituições, teorias, convenções de toda ordem. Só que tais parâmetros são arbitrários e redefiníveis – a gente os redefine vivendo. Com efeito, não há uma versão definitiva do passado, inventamos e confundimos lembranças que são tão “nossas” quanto poderiam ser de qualquer pessoa. O fascinante, enfim, não é saber quem já fomos um dia ou quem nos tornamos hoje, mas não fazer ideia de quem seremos amanhã ou nos próximos minutos, de como as coisas vão passar, para onde vão ou de que modo – antes que elas comecem a acontecer.

Porém tenho a impressão de que, embora ainda não tenhamos alcançado a imortalidade, o tempo de Nemo Nobody está se perdendo. Parece difícil retomar escolhas impossíveis em um fluxo de obrigações que prima por não nos deixar sair do presente, uma rotina previsível em sua gramática. Encontro-me entre aqueles que já não sabem de si enquanto protagonistas de suas pequenas histórias, verdadeiras ou falsas, porque não nos resta mais narrativa além do trabalho/profissão que já define de antemão quem somos ou deveríamos ser, engolindo e silenciando qualquer outra possibilidade. Aprendemos a tomar decisões porque tudo deve ser planejado, resolvido, contabilizado, perdoado e esquecido o mais rápido possível. Acho que desaprendemos a escolha pela não-escolha, aquela de uma criança que pode fingir ser qualquer pessoa do mundo.

O poeta é um fingidor.
Finge tão perfeitamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.
Autopsicografia – Fernando Pessoa

Marcos Beccari

Marcos Beccari

Doutorando em Educação na USP, designer gráfico e mestre em Design pela UFPR. Professor substituto no curso de Bacharelado em Design Gráfico na UFPR. Interessa-se por Filosofia, Psicologia e Comunicação, o que o levou a pesquisar sobre Filosofia do Design e a encarar o design como articulação simbólica na mediação ficcional que organiza o real. Além de atuar como professor e pesquisador, coordena o blog Filosofia do Design, integra o podcast AntiCast, é membro do projeto "Cinema e Educação: tela, espelho e janela" (USP-Fapesp) e colabora com outros blogs/revistas de design e comunicação.

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