Fotografar para esquecer

Por Guto Souza

Desde o momento em que você começou a ler esse texto mais de 10 mil fotos foram postadas no Facebook.  A cada dia 300 milhões de imagens são adicionadas à rede social. Opa, e lá se vão mais 10 mil. E olha que estamos falando só do Facebook, sem contar os outros milhões de sites presentes na imensidão da web.

É tanta, mas tanta imagem, que é difícil realmente conceber a quantidade. Para tentar tornar o número mais palpável, o artista Erik Kessels passou vinte e quatro horas copiando em tempo real as fotos adicionadas pelos usuários do Flickr. No total foram um milhão. Kessels imprimiu todas e com elas montou a exposição “Photography In Abundance”. O resultado ficou impressionante.

"Photography In Abundance", por Erik Kessels

“Photography In Abundance”, por Erik Kessels

Tudo isso leva a questões bastante discutidas atualmente: qual a relação que se tem hoje com a fotografia, e qual a relevância de cada imagem em meio a tantas outras?

A presença da fotografia na mediação entre as pessoas e os acontecimentos de suas vidas é constante. E muitas vezes exagera-se nessa relação. É comum, por exemplo, ir a um show musical e ver diversos espectadores captando a apresentação com suas câmeras ou celulares, apreciando o evento através do visor digital. A situação incomoda muita gente. Recentemente, a banda Yeah Yeah Yeahs teve que pedir ao público para fotografar menos, e aproveitar mais o show. Registrar uma ou outra foto para recordação certamente é interessante, mas qual o sentido de clicar uma centena de imagens de qualidade duvidosa, e não se concentrar na música?

Yeah Yeah Yeahs

O fotógrafo Fabio Seixo, com o projeto “Photoland”, também questiona esse tipo de comportamento. Ao visitar o Museu do Louvre e observar centenas de turistas espremendo-se para fotografar a Monalisa, Seixo percebeu que muitas pessoas não viajam para apreciar o destino, mas sim para registrá-lo em fotografias. A imagem é clicada para tornar-se uma prova de que a pessoa esteve no lugar.

Após o episódio no Louvre, Seixo passou a registrar a compulsão que as pessoas têm por fotografar a si mesmas em pontos turísticos. Com isso, procura refletir sobre o fato de a fotografia tornar-se mais importante que a experiência real. Segundo Seixo, “a fotografia, que sempre foi um instrumento de memória, passa a ser um dispositivo do esquecimento. Você fotografa não mais para guardar o momento, mas para poder esquecer”. Ou seja: as pessoas apenas registram o momento, e deixam de vivenciá-lo. Não se guarda a memória do evento ou do lugar, isso fica a cargo da fotografia. Fotografa-se para esquecer.

"Photoland", por Fabio Seixo

“Photoland”, por Fabio Seixo

O fotógrafo inglês Martin Parr possui um projeto semelhante, intitulado “Too Much Photography”. Parr fotografa há décadas o comportamento de visitantes em pontos turísticos, e relata: “Quando eu comecei a fotografar esse assunto, anos atrás, as pessoas tiravam somente uma foto em frente ao local, e continuavam seu caminho. Hoje, com as câmeras de celular e a fotografia digital, a visita inteira é documentada. Eu tenho a impressão de que ninguém realmente presta atenção à beleza do local, uma vez que a necessidade de fotografar é tão grande. O registro fotográfico da visita quase destrói a própria noção do observar”.

Parr, que faz parte da lendária agência fotográfica Magnum, esteve no Brasil recentemente. Foi a principal atração do Paraty em Foco, maior festival de fotografia do país. Durante sua palestra – uma das mais aguardadas do evento – o britânico provocou o público: “Hoje eu vi centenas de pessoas fotografando pelas ruas da cidade, e fiquei pensando: qual o significado de todas essas imagens? Para onde elas vão?”. Isso foi um chacoalhão na maioria dos fotógrafos presentes, que meia hora antes estavam clicando Paraty para exibir as imagens em suas redes sociais, ou para esquecê-las guardadas em algum HD.

"Too Much Photography", por Martin Parr

“Too Much Photography”, por Martin Parr

Na era digital, em que centenas de imagens nos atingem diariamente, é realmente necessário questionar o que e como estamos fotografando. Fotografar para recordar é uma coisa; fotografar para esquecer é completamente diferente.

Guto Souza

Guto Souza

Guto Souza nasceu e vive em Curitiba. Publicitário por formação e fotógrafo por paixão. Clica diferentes temáticas e linguagens em busca das suas próprias. Seus textos sobre Fotografia são publicados aos sábados, quinzenalmente.

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Fotografar para esquecer

Por Guto Souza

Desde o momento em que você começou a ler esse texto mais de 10 mil fotos foram postadas no Facebook.  A cada dia 300 milhões de imagens são adicionadas à rede social. Opa, e lá se vão mais 10 mil. E olha que estamos falando só do Facebook, sem contar os outros milhões de sites presentes na imensidão da web.

É tanta, mas tanta imagem, que é difícil realmente conceber a quantidade. Para tentar tornar o número mais palpável, o artista Erik Kessels passou vinte e quatro horas copiando em tempo real as fotos adicionadas pelos usuários do Flickr. No total foram um milhão. Kessels imprimiu todas e com elas montou a exposição “Photography In Abundance”. O resultado ficou impressionante.

"Photography In Abundance", por Erik Kessels

“Photography In Abundance”, por Erik Kessels

Tudo isso leva a questões bastante discutidas atualmente: qual a relação que se tem hoje com a fotografia, e qual a relevância de cada imagem em meio a tantas outras?

A presença da fotografia na mediação entre as pessoas e os acontecimentos de suas vidas é constante. E muitas vezes exagera-se nessa relação. É comum, por exemplo, ir a um show musical e ver diversos espectadores captando a apresentação com suas câmeras ou celulares, apreciando o evento através do visor digital. A situação incomoda muita gente. Recentemente, a banda Yeah Yeah Yeahs teve que pedir ao público para fotografar menos, e aproveitar mais o show. Registrar uma ou outra foto para recordação certamente é interessante, mas qual o sentido de clicar uma centena de imagens de qualidade duvidosa, e não se concentrar na música?

Yeah Yeah Yeahs

O fotógrafo Fabio Seixo, com o projeto “Photoland”, também questiona esse tipo de comportamento. Ao visitar o Museu do Louvre e observar centenas de turistas espremendo-se para fotografar a Monalisa, Seixo percebeu que muitas pessoas não viajam para apreciar o destino, mas sim para registrá-lo em fotografias. A imagem é clicada para tornar-se uma prova de que a pessoa esteve no lugar.

Após o episódio no Louvre, Seixo passou a registrar a compulsão que as pessoas têm por fotografar a si mesmas em pontos turísticos. Com isso, procura refletir sobre o fato de a fotografia tornar-se mais importante que a experiência real. Segundo Seixo, “a fotografia, que sempre foi um instrumento de memória, passa a ser um dispositivo do esquecimento. Você fotografa não mais para guardar o momento, mas para poder esquecer”. Ou seja: as pessoas apenas registram o momento, e deixam de vivenciá-lo. Não se guarda a memória do evento ou do lugar, isso fica a cargo da fotografia. Fotografa-se para esquecer.

"Photoland", por Fabio Seixo

“Photoland”, por Fabio Seixo

O fotógrafo inglês Martin Parr possui um projeto semelhante, intitulado “Too Much Photography”. Parr fotografa há décadas o comportamento de visitantes em pontos turísticos, e relata: “Quando eu comecei a fotografar esse assunto, anos atrás, as pessoas tiravam somente uma foto em frente ao local, e continuavam seu caminho. Hoje, com as câmeras de celular e a fotografia digital, a visita inteira é documentada. Eu tenho a impressão de que ninguém realmente presta atenção à beleza do local, uma vez que a necessidade de fotografar é tão grande. O registro fotográfico da visita quase destrói a própria noção do observar”.

Parr, que faz parte da lendária agência fotográfica Magnum, esteve no Brasil recentemente. Foi a principal atração do Paraty em Foco, maior festival de fotografia do país. Durante sua palestra – uma das mais aguardadas do evento – o britânico provocou o público: “Hoje eu vi centenas de pessoas fotografando pelas ruas da cidade, e fiquei pensando: qual o significado de todas essas imagens? Para onde elas vão?”. Isso foi um chacoalhão na maioria dos fotógrafos presentes, que meia hora antes estavam clicando Paraty para exibir as imagens em suas redes sociais, ou para esquecê-las guardadas em algum HD.

"Too Much Photography", por Martin Parr

“Too Much Photography”, por Martin Parr

Na era digital, em que centenas de imagens nos atingem diariamente, é realmente necessário questionar o que e como estamos fotografando. Fotografar para recordar é uma coisa; fotografar para esquecer é completamente diferente.

Guto Souza

Guto Souza

Guto Souza nasceu e vive em Curitiba. Publicitário por formação e fotógrafo por paixão. Clica diferentes temáticas e linguagens em busca das suas próprias. Seus textos sobre Fotografia são publicados aos sábados, quinzenalmente.

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