Dilemas do Design V: corporativismo

Por Marcos Beccari

“O design como conhecemos hoje só existe porque jovens de 20 a 30 anos se sujeitam a trabalhar como escravos para empresas que os usam como ferramentas.” – Charles Watson.

Muitos críticos sustentam que o indivíduo de hoje, diante de um suposto enfraquecimento dos tradicionais laços de identidade (família, trabalho, religião, panelinha etc.), tem abandonado o sentimento de identidade coletiva em proveito de condutas narcisistas e hedonistas. É uma leitura plausível, mas simplifica questões prementes, sobre as quais ainda pretendo discorrer em ensaios mais longos, fora dessa série dos dilemas do design.

Por ora, quero apenas elucidar como é que certo conservadorismo corporativista tem sabotado nosso pequeno universo do design. Depois que lançaram certa “tabela de preços” na internet, houve uma polêmica que desenrolou para outras instâncias, gerando uma perseguição predatória contra designers “novatos” (oi?) que estão chegando agora.

Resumo do big brother: uma pessoa-que-não-se-pode-falar-o-nome começou a atirar pra todos os lados, para depois tentar sair como vítima da história e, sem ninguém perceber, tirar proveito da situação através de um vídeo autopromocional (e automotivacional). E por mais que eu nem tenha opinado sobre aquela tabela inicial (a saber, sou contra), acabei me tornando ícone de uma “geração perdida” que supostamente não respeita os mais velhos, os mais experientes etc.

Sei que tudo isso dá muita preguiça, mesmo porque eu sinceramente gostaria que os argumentos envolvidos fossem minimamente mais fortes. Mas acho que esse episódio trouxe à tona um verdadeiro dilema até então escamoteado por todos: o conservadorismo predatório de certa concepção de “mercado” versus a indiferença de alguns designers inconformáveis.

Aí você pensa de onde eu tirei essa história, já que designers sempre são descolados, vanguardistas, super tendência. Pode até ser, o problema é fingir que não existem tensões ideológicas por trás deste arco-íris da alegria.

Bem, devo esclarecer o óbvio de antemão: não tenho nada contra o “mercado” (até porque ele não existe) nem contra os mais velhos (recortar e descontextualizar minhas palavras foi golpe baixo), a questão não é e nunca foi esta.

A questão é fazer da “experiência” munição de uma inquisição em praça pública, distribuindo as vísceras do suposto culpado como cartão de visitas em um nítido desespero autopromocional.

Aquela tal da “sabedoria” do mercado, tão cultuada por muitos, é precisamente o que eu chamo de corporativismo: tirar proveito de qualquer situação, custe o que custar. Começar atacando todo mundo e, depois que a poeira baixar, apaziguar a situação como um “bom samaritano” que oferece gratuitamente seus serviços de consultoria.

Não, dessa vez não estou com papinho intelectual, estou é com náuseas. Não sei o que é mais nojento: caçar violentamente colegas de profissão por puro protecionismo econômico ou fazer disso uma estratégia oportunista que transforma o caçador em vítima. Estratégia esta que nada tem de conspiratória, pelo contrário, de tão conhecida já se tornou inquestionável – como o slogan do “nos vemos no mundo real” (não aquele do Papanek, da década de 1970, mas… putz que preguiça).

O imperativo é: conforme-se, é assim que as coisas funcionam. Estar desempregado é tipo uma doença grave, questionar e debater é perda de tempo, estudar demais significa falta de sexo etc. O sentido da vida resume-se a ter uma carreira de sucesso, conhecer o preço de tudo (e o valor de nada) para garantir o leite das crianças. E o argumento infalível são os anos de experiência nas costas, mesmo numa época em que o PC Siqueira tem muito mais credibilidade que o Papa.

Sob este viés, o que significa educação? Nada mais do que preparar as pessoas para o mundo do trabalho, restringindo seu conhecimento a procedimentos técnicos direcionados a cumprir “metas” (corporativismo), uma vez que “aprender” não é necessário senão para realizar isso ou aquilo e, no fim, conseguir ser “bem sucedido” na vida.

Então a faculdade assume o papel de dar a bênção (diploma) para o tão almejado sonho de ascendência social, o que obviamente funciona como reprodução (e promoção) das desigualdades sociais.

Moral da história: uma vez engolido pelo corporativismo, você fará de tudo para que sua própria existência se reduza a ele, de tal modo que sua autorrealização estará restrita a uma realização profissional. Todo o resto torna-se hobby ou passatempo meramente genérico e descartável: estudar, aumentar o repertório cultural, cultivar a sensibilidade artística, fazer amigos etc.

Desculpe se eu fiz alguém aí vomitar, mas foi só para mostrar que todo esse papinho de tentar apaziguar a discussão, como se todo mundo fosse amiguinho, é um verdadeiro tiro no pé. Significa escamotear novamente uma questão importante que, de um jeito ou de outro, foi debatida nos últimos dias (e pelo jeito já está prestes a ser esquecida).

Perceber ainda que tanta gente aceitou de mão beijada todas as piadas-prontas daquele vídeo (da pessoa-que-não-se-pode-falar-o-nome) não é apenas lamentável. É inacreditável. Ninguém se deu conta de que a maior arrogância foi a de parecer forçadamente humilde, que o ataque mais injustificável foi a vitimização do carrasco.

Sério, não teve graça nenhuma, foi uma verdadeira piada de mau gosto com a qual não tenho a menor condição de ser complacente.

Para aqueles que, como eu, ficaram com vontade de morrer ou de matar alguém, eu diria: calma, se concentra e aproveita a raiva para navegar sem se deixar levar pela correnteza. Há uma lição a se tirar disso tudo? Sim: não é o trabalho que fazemos (ou quanto cobramos por ele) que define o que nós somos, mas somos nós que devemos definir o que o trabalho, ou o mercado, significa (e o quanto ele vale) para nós.

E para aqueles que preferem acreditar naquele tal de “mundo real”, ou mesmo aqueles que acharam melhor “ficar na sua”, peço desculpas por minha total falta de diplomacia. É que meu estômago não é de ferro. Mas sério, toma cuidado. Porque uma hora, sem você perceber, existirá no seu “mundo real” uma tabela finalmente decretada, rigorosamente controlada, fiscalizada e tudo mais. O cara que acabou de sair da faculdade vai cobrar o mesmo preço que o cara que está há 50 anos no mercado. Essa é a piada.

[Felizmente, do lado de fora do design ainda há sinais de lucidez. Indico a leitura das provocações afiadas de Gustavot Diaz em relação ao vídeo daquele cujo nome-não-se-pode-falar: http://acrasias.wordpress.com/2013/04/22/3/]

Marcos Beccari

Marcos Beccari

Doutorando em Educação na USP, designer gráfico e mestre em Design pela UFPR. Professor substituto no curso de Bacharelado em Design Gráfico na UFPR. Interessa-se por Filosofia, Psicologia e Comunicação, o que o levou a pesquisar sobre Filosofia do Design e a encarar o design como articulação simbólica na mediação ficcional que organiza o real. Além de atuar como professor e pesquisador, coordena o blog Filosofia do Design, integra o podcast AntiCast, é membro do projeto "Cinema e Educação: tela, espelho e janela" (USP-Fapesp) e colabora com outros blogs/revistas de design e comunicação.

Conteúdo relacionado

Comentários

Os comentários estão encerrados.

Dilemas do Design V: corporativismo

Por Marcos Beccari

“O design como conhecemos hoje só existe porque jovens de 20 a 30 anos se sujeitam a trabalhar como escravos para empresas que os usam como ferramentas.” – Charles Watson.

Muitos críticos sustentam que o indivíduo de hoje, diante de um suposto enfraquecimento dos tradicionais laços de identidade (família, trabalho, religião, panelinha etc.), tem abandonado o sentimento de identidade coletiva em proveito de condutas narcisistas e hedonistas. É uma leitura plausível, mas simplifica questões prementes, sobre as quais ainda pretendo discorrer em ensaios mais longos, fora dessa série dos dilemas do design.

Por ora, quero apenas elucidar como é que certo conservadorismo corporativista tem sabotado nosso pequeno universo do design. Depois que lançaram certa “tabela de preços” na internet, houve uma polêmica que desenrolou para outras instâncias, gerando uma perseguição predatória contra designers “novatos” (oi?) que estão chegando agora.

Resumo do big brother: uma pessoa-que-não-se-pode-falar-o-nome começou a atirar pra todos os lados, para depois tentar sair como vítima da história e, sem ninguém perceber, tirar proveito da situação através de um vídeo autopromocional (e automotivacional). E por mais que eu nem tenha opinado sobre aquela tabela inicial (a saber, sou contra), acabei me tornando ícone de uma “geração perdida” que supostamente não respeita os mais velhos, os mais experientes etc.

Sei que tudo isso dá muita preguiça, mesmo porque eu sinceramente gostaria que os argumentos envolvidos fossem minimamente mais fortes. Mas acho que esse episódio trouxe à tona um verdadeiro dilema até então escamoteado por todos: o conservadorismo predatório de certa concepção de “mercado” versus a indiferença de alguns designers inconformáveis.

Aí você pensa de onde eu tirei essa história, já que designers sempre são descolados, vanguardistas, super tendência. Pode até ser, o problema é fingir que não existem tensões ideológicas por trás deste arco-íris da alegria.

Bem, devo esclarecer o óbvio de antemão: não tenho nada contra o “mercado” (até porque ele não existe) nem contra os mais velhos (recortar e descontextualizar minhas palavras foi golpe baixo), a questão não é e nunca foi esta.

A questão é fazer da “experiência” munição de uma inquisição em praça pública, distribuindo as vísceras do suposto culpado como cartão de visitas em um nítido desespero autopromocional.

Aquela tal da “sabedoria” do mercado, tão cultuada por muitos, é precisamente o que eu chamo de corporativismo: tirar proveito de qualquer situação, custe o que custar. Começar atacando todo mundo e, depois que a poeira baixar, apaziguar a situação como um “bom samaritano” que oferece gratuitamente seus serviços de consultoria.

Não, dessa vez não estou com papinho intelectual, estou é com náuseas. Não sei o que é mais nojento: caçar violentamente colegas de profissão por puro protecionismo econômico ou fazer disso uma estratégia oportunista que transforma o caçador em vítima. Estratégia esta que nada tem de conspiratória, pelo contrário, de tão conhecida já se tornou inquestionável – como o slogan do “nos vemos no mundo real” (não aquele do Papanek, da década de 1970, mas… putz que preguiça).

O imperativo é: conforme-se, é assim que as coisas funcionam. Estar desempregado é tipo uma doença grave, questionar e debater é perda de tempo, estudar demais significa falta de sexo etc. O sentido da vida resume-se a ter uma carreira de sucesso, conhecer o preço de tudo (e o valor de nada) para garantir o leite das crianças. E o argumento infalível são os anos de experiência nas costas, mesmo numa época em que o PC Siqueira tem muito mais credibilidade que o Papa.

Sob este viés, o que significa educação? Nada mais do que preparar as pessoas para o mundo do trabalho, restringindo seu conhecimento a procedimentos técnicos direcionados a cumprir “metas” (corporativismo), uma vez que “aprender” não é necessário senão para realizar isso ou aquilo e, no fim, conseguir ser “bem sucedido” na vida.

Então a faculdade assume o papel de dar a bênção (diploma) para o tão almejado sonho de ascendência social, o que obviamente funciona como reprodução (e promoção) das desigualdades sociais.

Moral da história: uma vez engolido pelo corporativismo, você fará de tudo para que sua própria existência se reduza a ele, de tal modo que sua autorrealização estará restrita a uma realização profissional. Todo o resto torna-se hobby ou passatempo meramente genérico e descartável: estudar, aumentar o repertório cultural, cultivar a sensibilidade artística, fazer amigos etc.

Desculpe se eu fiz alguém aí vomitar, mas foi só para mostrar que todo esse papinho de tentar apaziguar a discussão, como se todo mundo fosse amiguinho, é um verdadeiro tiro no pé. Significa escamotear novamente uma questão importante que, de um jeito ou de outro, foi debatida nos últimos dias (e pelo jeito já está prestes a ser esquecida).

Perceber ainda que tanta gente aceitou de mão beijada todas as piadas-prontas daquele vídeo (da pessoa-que-não-se-pode-falar-o-nome) não é apenas lamentável. É inacreditável. Ninguém se deu conta de que a maior arrogância foi a de parecer forçadamente humilde, que o ataque mais injustificável foi a vitimização do carrasco.

Sério, não teve graça nenhuma, foi uma verdadeira piada de mau gosto com a qual não tenho a menor condição de ser complacente.

Para aqueles que, como eu, ficaram com vontade de morrer ou de matar alguém, eu diria: calma, se concentra e aproveita a raiva para navegar sem se deixar levar pela correnteza. Há uma lição a se tirar disso tudo? Sim: não é o trabalho que fazemos (ou quanto cobramos por ele) que define o que nós somos, mas somos nós que devemos definir o que o trabalho, ou o mercado, significa (e o quanto ele vale) para nós.

E para aqueles que preferem acreditar naquele tal de “mundo real”, ou mesmo aqueles que acharam melhor “ficar na sua”, peço desculpas por minha total falta de diplomacia. É que meu estômago não é de ferro. Mas sério, toma cuidado. Porque uma hora, sem você perceber, existirá no seu “mundo real” uma tabela finalmente decretada, rigorosamente controlada, fiscalizada e tudo mais. O cara que acabou de sair da faculdade vai cobrar o mesmo preço que o cara que está há 50 anos no mercado. Essa é a piada.

[Felizmente, do lado de fora do design ainda há sinais de lucidez. Indico a leitura das provocações afiadas de Gustavot Diaz em relação ao vídeo daquele cujo nome-não-se-pode-falar: http://acrasias.wordpress.com/2013/04/22/3/]

Marcos Beccari

Marcos Beccari

Doutorando em Educação na USP, designer gráfico e mestre em Design pela UFPR. Professor substituto no curso de Bacharelado em Design Gráfico na UFPR. Interessa-se por Filosofia, Psicologia e Comunicação, o que o levou a pesquisar sobre Filosofia do Design e a encarar o design como articulação simbólica na mediação ficcional que organiza o real. Além de atuar como professor e pesquisador, coordena o blog Filosofia do Design, integra o podcast AntiCast, é membro do projeto "Cinema e Educação: tela, espelho e janela" (USP-Fapesp) e colabora com outros blogs/revistas de design e comunicação.

Conteúdo relacionado

Comentários

Os comentários estão encerrados.