O retrato além da imagem

Por Guto Souza

Gostando ou não de Fotografia, é interessante para o designer compreender a força comunicativa proporcionada por um retrato. Não se trata, ou não se trata apenas, de identificação estética; o verdadeiro retrato leva ao observador emoções, ideias, convicções, questionamentos.

A escolha da figura do Tio Sam, este severo senhor com a cara do Abraham Lincoln, foi certeira para despertar o nacionalismo norte-americano, conduzir os jovens do país aos campos de batalha e transformar o cartaz abaixo em símbolo atemporal da propaganda bem feita. Será que, nos EUA do início do século XX, o cartaz funcionaria se o retratado estivesse sorrindo? Ou se não tivesse cabelos brancos? Ou mesmo se não estivesse lá?

“Parece mais fácil acreditar em uma pessoa que tem ideias abstratas. A imagem identifica uma individualidade, alguém que personifica as ideias”.
(Cláudio Araújo Kubrusly)

Ok, eu sei que o Tio Sam é uma ilustração, e não uma foto. O retrato já encantava os pintores muito antes de a Fotografia surgir. Da Vinci, Caravaggio, Vermeer, todos trabalharam com primor estético a representação do ser humano. E não puderam deixar de conferir certa profundidade psicológica às obras, fosse pintando um brinco de pérola ou um sorriso enigmático.

De Renascentistas a Expressionistas, o retrato sempre foi tema.

Entretanto, por mais talentoso que seja o artista, pincel e tinta são uma limitação técnica que impede a criação de uma imagem totalmente fiel à realidade. Sem contar que a própria interpretação do pintor, implícita ou explícita na obra, distorce o real.

Com o surgimento da Fotografia o retrato deixou de ser vítima da imperícia ou da genialidade nas pinceladas do artista. À óptica da máquina fotográfica não escapa nem um fiapo da realidade que enxergamos. O que permanece é a interpretação, pois cabe ao fotógrafo escolher a abordagem que dá ao assunto fotografado.

No início a Fotografia também sofreu com grandes limitações técnicas. Os primeiros retratos, datados de 1840, são marcados por poses duras, corpos retesados e rostos aborrecidos. Não é que as pessoas daquela época fossem menos simpáticas; o problema é que precisavam ficar imóveis durante longos minutos para que sua imagem fosse registrada.

Parece que os dois brigaram antes da foto, mas essas caras são de desconforto.
(foto por Robert Cornelius, 1840)

A tecnologia evoluiu, as máquinas fotográficas diminuíram, a fotossensibilidade dos suportes fotográficos aumentou, e o início do século XX ofereceu múltiplas possibilidades à Fotografia. As câmeras podiam ser facilmente transportadas, e as imagens registradas em frações de segundo. Com isso, os olhos dos fotógrafos voltaram-se naturalmente àquilo que mais atrai o ser humano: os outros seres humanos. Nas regiões mais populosas às mais remotas, nas situações mais extravagantes às mais banais; as pessoas passaram a ser incessantemente fotografadas. O retrato foi legitimado como o tema mais recorrente e, ao mesmo tempo, o mais instigante da Fotografia. E assim permanece.

A princípio essas imagens parecem justificar-se apenas pela beleza. Mas um retrato baseado somente na estética é deveras vazio. Mais do que expor, a fotografia oculta informações. “Quem é essa pessoa? De onde vem? No que acredita? Por que age dessa maneira?”. Essas questões, entre várias outras intrínsecas ao retrato, são precisamente o que motivam e atraem a mente humana. E as escolhas feitas pelo fotógrafo é que irão sugerir as respostas.

Não é necessário que o retrato capture o rosto do homem. Esses pés, por exemplo, representam perfeitamente a cultura de um povo. (foto por Steve McCurry, 1996)

O fotógrafo mira o indivíduo do grupo com a roupa diferente, o olhar expressivo, a sujeira no rosto; opta por determinada iluminação, ângulo e enquadramento; compõe a cena, enfatiza a pessoa ou o ambiente, foca ou desfoca objetos; clica no momento preciso. Constrói e dá vida à imagem inanimada.

Ah, a infância! Quando duas garrafas de vinho eram o suficiente para ser feliz. (foto por Henry Cartier-Bresson, 1954)

Dessa maneira Sebastião Salgado denuncia as mazelas da humanidade, Steve McCurry apresenta a fantástica cultura oriental, e Henry Cartier-Bresson eterniza as cenas do cotidiano parisiense. Assim como tantos outros mestres da Fotografia, nos oferecem em retratos a tragédia e a comédia do mundo, e nos levam além.

“Para ser um verdadeiro retratista é necessário ultrapassar o mero registro para, de mãos dadas com a tradição de 150 anos de retratos fotográficos, mirar a carne e atingir a alma”. (Osvaldo Santos Lima)

 

Guto Souza

Guto Souza

Guto Souza nasceu e vive em Curitiba. Publicitário por formação e fotógrafo por paixão. Clica diferentes temáticas e linguagens em busca das suas próprias. Seus textos sobre Fotografia são publicados aos sábados, quinzenalmente.

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O retrato além da imagem

Por Guto Souza

Gostando ou não de Fotografia, é interessante para o designer compreender a força comunicativa proporcionada por um retrato. Não se trata, ou não se trata apenas, de identificação estética; o verdadeiro retrato leva ao observador emoções, ideias, convicções, questionamentos.

A escolha da figura do Tio Sam, este severo senhor com a cara do Abraham Lincoln, foi certeira para despertar o nacionalismo norte-americano, conduzir os jovens do país aos campos de batalha e transformar o cartaz abaixo em símbolo atemporal da propaganda bem feita. Será que, nos EUA do início do século XX, o cartaz funcionaria se o retratado estivesse sorrindo? Ou se não tivesse cabelos brancos? Ou mesmo se não estivesse lá?

“Parece mais fácil acreditar em uma pessoa que tem ideias abstratas. A imagem identifica uma individualidade, alguém que personifica as ideias”.
(Cláudio Araújo Kubrusly)

Ok, eu sei que o Tio Sam é uma ilustração, e não uma foto. O retrato já encantava os pintores muito antes de a Fotografia surgir. Da Vinci, Caravaggio, Vermeer, todos trabalharam com primor estético a representação do ser humano. E não puderam deixar de conferir certa profundidade psicológica às obras, fosse pintando um brinco de pérola ou um sorriso enigmático.

De Renascentistas a Expressionistas, o retrato sempre foi tema.

Entretanto, por mais talentoso que seja o artista, pincel e tinta são uma limitação técnica que impede a criação de uma imagem totalmente fiel à realidade. Sem contar que a própria interpretação do pintor, implícita ou explícita na obra, distorce o real.

Com o surgimento da Fotografia o retrato deixou de ser vítima da imperícia ou da genialidade nas pinceladas do artista. À óptica da máquina fotográfica não escapa nem um fiapo da realidade que enxergamos. O que permanece é a interpretação, pois cabe ao fotógrafo escolher a abordagem que dá ao assunto fotografado.

No início a Fotografia também sofreu com grandes limitações técnicas. Os primeiros retratos, datados de 1840, são marcados por poses duras, corpos retesados e rostos aborrecidos. Não é que as pessoas daquela época fossem menos simpáticas; o problema é que precisavam ficar imóveis durante longos minutos para que sua imagem fosse registrada.

Parece que os dois brigaram antes da foto, mas essas caras são de desconforto.
(foto por Robert Cornelius, 1840)

A tecnologia evoluiu, as máquinas fotográficas diminuíram, a fotossensibilidade dos suportes fotográficos aumentou, e o início do século XX ofereceu múltiplas possibilidades à Fotografia. As câmeras podiam ser facilmente transportadas, e as imagens registradas em frações de segundo. Com isso, os olhos dos fotógrafos voltaram-se naturalmente àquilo que mais atrai o ser humano: os outros seres humanos. Nas regiões mais populosas às mais remotas, nas situações mais extravagantes às mais banais; as pessoas passaram a ser incessantemente fotografadas. O retrato foi legitimado como o tema mais recorrente e, ao mesmo tempo, o mais instigante da Fotografia. E assim permanece.

A princípio essas imagens parecem justificar-se apenas pela beleza. Mas um retrato baseado somente na estética é deveras vazio. Mais do que expor, a fotografia oculta informações. “Quem é essa pessoa? De onde vem? No que acredita? Por que age dessa maneira?”. Essas questões, entre várias outras intrínsecas ao retrato, são precisamente o que motivam e atraem a mente humana. E as escolhas feitas pelo fotógrafo é que irão sugerir as respostas.

Não é necessário que o retrato capture o rosto do homem. Esses pés, por exemplo, representam perfeitamente a cultura de um povo. (foto por Steve McCurry, 1996)

O fotógrafo mira o indivíduo do grupo com a roupa diferente, o olhar expressivo, a sujeira no rosto; opta por determinada iluminação, ângulo e enquadramento; compõe a cena, enfatiza a pessoa ou o ambiente, foca ou desfoca objetos; clica no momento preciso. Constrói e dá vida à imagem inanimada.

Ah, a infância! Quando duas garrafas de vinho eram o suficiente para ser feliz. (foto por Henry Cartier-Bresson, 1954)

Dessa maneira Sebastião Salgado denuncia as mazelas da humanidade, Steve McCurry apresenta a fantástica cultura oriental, e Henry Cartier-Bresson eterniza as cenas do cotidiano parisiense. Assim como tantos outros mestres da Fotografia, nos oferecem em retratos a tragédia e a comédia do mundo, e nos levam além.

“Para ser um verdadeiro retratista é necessário ultrapassar o mero registro para, de mãos dadas com a tradição de 150 anos de retratos fotográficos, mirar a carne e atingir a alma”. (Osvaldo Santos Lima)

 

Guto Souza

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Guto Souza nasceu e vive em Curitiba. Publicitário por formação e fotógrafo por paixão. Clica diferentes temáticas e linguagens em busca das suas próprias. Seus textos sobre Fotografia são publicados aos sábados, quinzenalmente.

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