Dilemas do design II: dualismos

Por Marcos Beccari

Todo projeto é uma forma camuflada de escravidão? – Emil Cioran

O profissional de design representa SIM um dos protagonistas da contemporaneidade na medida em que ele atua no seio de um processo (dentre muitos outros) de produção-distribuição-consumo que se estabeleceu, no decorrer das últimas décadas, como força motriz social. Uma perspectiva otimista consideraria o design, neste contexto, como novo ponto de encontro e convergência de uma miríade disciplinar que fundamentaria a reflexão intelectual e informaria a uma práxis cultural crítica e inovadora.

Se for o caso, e obviamente quero crer que sim, o embasamento necessário ao exercício da “profissão design” estaria seguindo um trajeto contínuo de inter-relações dos vários campos do saber e tipos de sensibilidades. Projetar, planejar, gerenciar e produzir seriam condutas que superariam a mera reprodução, repetição e utilização das técnicas (mesmo das mais atuais).

Mas se, novamente, fosse o caso, como explicar nossa deficiente formação cultural e filosófica que nos conduz invariavelmente a um encurtamento de horizontes teóricos e profissionais? Por mais que estudemos, por exemplo, a Bauhaus e seus ideais progressistas, ainda continuamos longe de conseguir defender qualquer posição consistente diante dos problemas atuais e, se criticados, oscilamos entre um silêncio despreocupado e uma tagarelice autista e cega.

Motivo e consequência: por um lado, professores e pesquisadores de design limitados a “conhecimentos” cada vez mais restritos e, por outro lado, designers que se sujeitam a trabalhar como escravos para empresas que os usam como ferramentas substituíveis. Há muitas maneiras de se reverter isso, como através do debate acadêmico e do engajamento político da profissão. Mas se, por um lado, os “panos quentes” pedagógicos habituais dificultam a formação de um intelectual com condições de contribuir, junto a intelectuais de outras áreas, no questionamento e na ressignificação da atualidade, por outro lado, nossa classe profissional parece movimentar-se apenas no sentido da maior especialização técnica, sem autorreflexão alguma.

Acredito que a chave radical por trás dessa questão resida na indeterminação da ação que o projeto antecipa. Pois se o projeto em si pode ser definido como antecipação para agir, uma curva no horizonte espaço-temporal, o “ainda-não-ser”, ele estaria destinado a permanecer ontologicamente incompleto, destruindo a si mesmo no momento em que se realiza.

Só que ao invés de investigarmos os pormenores deste dilema ontológico (fica para um próximo post), por ora proponho apenas analisarmos de que modo suas consequências mais diretas aparecem no modo como fazemos design:

1. Intenção x Materialização: A relação dialética entre o ainda-não-formulado intencional e o materializado-projetado naturalmente acontece sobre uma ausência paradigmática semelhante a um abismo sem fundo – seja em direção a um salto arriscado demais (quando a intenção é clara, mas dificilmente executável), seja diante de uma ponte afastada demais (quando algo já foi materializado, mas a intenção é desconhecida). É fácil dizer “o espírito faz a mão e a mão faz o espírito” (H. Focillon), “a forma segue a função” (Louis Sullivan) ou “tudo deve adequar-se ao propósito” (Bauhaus), difícil é admitir que a ação projetual é resistente contra si mesma, eliminando e recriando suas próprias coordenadas e variáveis.

2. Criação X Repetição: A princípio, um projeto depende de fatores identitários e particulares – do designer, do contexto e das circunstâncias. Mas a lógica da ação e da prática contínua (a “experiência” profissional) reside em memorizar, ao menos parcialmente, os meios através dos quais essa alteridade é absorvida e gerenciada. A dupla armadilha é, por um lado, a paralisia sufocante frente ao inapreensível “papel em branco” (sob a desculpa de inibição, deadline, sono atrasado etc.) e, por outro lado, a fuga em direção a receitas universais, encerrando e dissolvendo, aos poucos, os fatores identitários e particulares iniciais em proveito de um “estilo” (referências, técnicas e processos infalíveis).

3. Amnésia x Autonomia: Por ocasião do acúmulo de “jobs” simultâneos e do encurtamento de prazos, recursos, expectativas, aspirações profissionais etc., gera-se uma amnésia que distorce ou anula completamente nossas lembranças sobre êxitos e fracassos projetuais. Ao mesmo tempo e pelos mesmos motivos, a “autonomia do designer”, enquanto capacidade de iniciativa (seleção, análise, decisão, síntese) em relação às imposições que pesam sobre ele, é cada vez mais cobrada e recobrada. Trata-se então de uma falsa autonomia escamoteada em puro voluntarismo, ativismo e engajamento, os quais, por sua vez, funcionam como máscaras de acomodação imobilizante: “nem lembro mais por que faço isso, mas amo o que faço!”.

4. Autoafirmação x “Mundo Real”: Estilos, modas, tendências e excentricidades são manipulados de acordo com o “bom gosto” dos designers em relação ao trabalho deles mesmos. Esta é uma das poucas máximas que ainda fazem sentido no discurso de Victor Papaneck, datado nos anos de 1970: “O design é feito essencialmente para os designers”. Por conseguinte: o design não resolve problemas, exceto aqueles criados por ele e, com isso, somente reafirma a si mesmo e reduz as opções de que as pessoas dispõem. Entretanto, é a partir desta mesma crítica contra a “autoafirmação” que Papanek (e muitos designers) caem na armadilha do “mundo real”: a ideia de que o design deveria resolver os verdadeiros problemas do mundo – desequilíbrios ecológicos, desigualdades sociais, conflitos políticos, violência urbana etc. Obviamente, tal preocupação pelo “mundo real” é também um tipo de invenção autoafirmativa, neste caso sob a máscara de preocupação social ou mercadológica.

Contra aquela indeterminação da ação a ser projetada, o mais fácil é reconhecer certos “padrões” – presunçosamente justificados pela forma que segue a função – entre carros, eletrodomésticos, interfaces digitais etc. Tanto que mesmo os tópicos descritos acima não passam de uma fácil padronização (proposital, é claro) dualista. A ideia geral, portanto, é pensar na possibilidade de escaparmos desta moralidade dualista: o que pode haver além do padrão e do indeterminado, além do eu e do outro, além da forma e da função, além do projeto e da ação cega?

Talvez o que pode haver não esteja propriamente “além”, mas nas diferenças mínimas violentamente destruídas por essa dicotomização simplista do mundo.

Marcos Beccari

Marcos Beccari

Doutorando em Educação na USP, designer gráfico e mestre em Design pela UFPR. Professor substituto no curso de Bacharelado em Design Gráfico na UFPR. Interessa-se por Filosofia, Psicologia e Comunicação, o que o levou a pesquisar sobre Filosofia do Design e a encarar o design como articulação simbólica na mediação ficcional que organiza o real. Além de atuar como professor e pesquisador, coordena o blog Filosofia do Design, integra o podcast AntiCast, é membro do projeto "Cinema e Educação: tela, espelho e janela" (USP-Fapesp) e colabora com outros blogs/revistas de design e comunicação.

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O profissional de design representa SIM um dos protagonistas da contemporaneidade na medida em que ele atua no seio de um processo (dentre muitos outros) de produção-distribuição-consumo que se estabeleceu, no decorrer das últimas décadas, como força motriz social. Uma perspectiva otimista consideraria o design, neste contexto, como novo ponto de encontro e convergência de uma miríade disciplinar que fundamentaria a reflexão intelectual e informaria a uma práxis cultural crítica e inovadora.

Se for o caso, e obviamente quero crer que sim, o embasamento necessário ao exercício da “profissão design” estaria seguindo um trajeto contínuo de inter-relações dos vários campos do saber e tipos de sensibilidades. Projetar, planejar, gerenciar e produzir seriam condutas que superariam a mera reprodução, repetição e utilização das técnicas (mesmo das mais atuais).

Mas se, novamente, fosse o caso, como explicar nossa deficiente formação cultural e filosófica que nos conduz invariavelmente a um encurtamento de horizontes teóricos e profissionais? Por mais que estudemos, por exemplo, a Bauhaus e seus ideais progressistas, ainda continuamos longe de conseguir defender qualquer posição consistente diante dos problemas atuais e, se criticados, oscilamos entre um silêncio despreocupado e uma tagarelice autista e cega.

Motivo e consequência: por um lado, professores e pesquisadores de design limitados a “conhecimentos” cada vez mais restritos e, por outro lado, designers que se sujeitam a trabalhar como escravos para empresas que os usam como ferramentas substituíveis. Há muitas maneiras de se reverter isso, como através do debate acadêmico e do engajamento político da profissão. Mas se, por um lado, os “panos quentes” pedagógicos habituais dificultam a formação de um intelectual com condições de contribuir, junto a intelectuais de outras áreas, no questionamento e na ressignificação da atualidade, por outro lado, nossa classe profissional parece movimentar-se apenas no sentido da maior especialização técnica, sem autorreflexão alguma.

Acredito que a chave radical por trás dessa questão resida na indeterminação da ação que o projeto antecipa. Pois se o projeto em si pode ser definido como antecipação para agir, uma curva no horizonte espaço-temporal, o “ainda-não-ser”, ele estaria destinado a permanecer ontologicamente incompleto, destruindo a si mesmo no momento em que se realiza.

Só que ao invés de investigarmos os pormenores deste dilema ontológico (fica para um próximo post), por ora proponho apenas analisarmos de que modo suas consequências mais diretas aparecem no modo como fazemos design:

1. Intenção x Materialização: A relação dialética entre o ainda-não-formulado intencional e o materializado-projetado naturalmente acontece sobre uma ausência paradigmática semelhante a um abismo sem fundo – seja em direção a um salto arriscado demais (quando a intenção é clara, mas dificilmente executável), seja diante de uma ponte afastada demais (quando algo já foi materializado, mas a intenção é desconhecida). É fácil dizer “o espírito faz a mão e a mão faz o espírito” (H. Focillon), “a forma segue a função” (Louis Sullivan) ou “tudo deve adequar-se ao propósito” (Bauhaus), difícil é admitir que a ação projetual é resistente contra si mesma, eliminando e recriando suas próprias coordenadas e variáveis.

2. Criação X Repetição: A princípio, um projeto depende de fatores identitários e particulares – do designer, do contexto e das circunstâncias. Mas a lógica da ação e da prática contínua (a “experiência” profissional) reside em memorizar, ao menos parcialmente, os meios através dos quais essa alteridade é absorvida e gerenciada. A dupla armadilha é, por um lado, a paralisia sufocante frente ao inapreensível “papel em branco” (sob a desculpa de inibição, deadline, sono atrasado etc.) e, por outro lado, a fuga em direção a receitas universais, encerrando e dissolvendo, aos poucos, os fatores identitários e particulares iniciais em proveito de um “estilo” (referências, técnicas e processos infalíveis).

3. Amnésia x Autonomia: Por ocasião do acúmulo de “jobs” simultâneos e do encurtamento de prazos, recursos, expectativas, aspirações profissionais etc., gera-se uma amnésia que distorce ou anula completamente nossas lembranças sobre êxitos e fracassos projetuais. Ao mesmo tempo e pelos mesmos motivos, a “autonomia do designer”, enquanto capacidade de iniciativa (seleção, análise, decisão, síntese) em relação às imposições que pesam sobre ele, é cada vez mais cobrada e recobrada. Trata-se então de uma falsa autonomia escamoteada em puro voluntarismo, ativismo e engajamento, os quais, por sua vez, funcionam como máscaras de acomodação imobilizante: “nem lembro mais por que faço isso, mas amo o que faço!”.

4. Autoafirmação x “Mundo Real”: Estilos, modas, tendências e excentricidades são manipulados de acordo com o “bom gosto” dos designers em relação ao trabalho deles mesmos. Esta é uma das poucas máximas que ainda fazem sentido no discurso de Victor Papaneck, datado nos anos de 1970: “O design é feito essencialmente para os designers”. Por conseguinte: o design não resolve problemas, exceto aqueles criados por ele e, com isso, somente reafirma a si mesmo e reduz as opções de que as pessoas dispõem. Entretanto, é a partir desta mesma crítica contra a “autoafirmação” que Papanek (e muitos designers) caem na armadilha do “mundo real”: a ideia de que o design deveria resolver os verdadeiros problemas do mundo – desequilíbrios ecológicos, desigualdades sociais, conflitos políticos, violência urbana etc. Obviamente, tal preocupação pelo “mundo real” é também um tipo de invenção autoafirmativa, neste caso sob a máscara de preocupação social ou mercadológica.

Contra aquela indeterminação da ação a ser projetada, o mais fácil é reconhecer certos “padrões” – presunçosamente justificados pela forma que segue a função – entre carros, eletrodomésticos, interfaces digitais etc. Tanto que mesmo os tópicos descritos acima não passam de uma fácil padronização (proposital, é claro) dualista. A ideia geral, portanto, é pensar na possibilidade de escaparmos desta moralidade dualista: o que pode haver além do padrão e do indeterminado, além do eu e do outro, além da forma e da função, além do projeto e da ação cega?

Talvez o que pode haver não esteja propriamente “além”, mas nas diferenças mínimas violentamente destruídas por essa dicotomização simplista do mundo.

Marcos Beccari

Marcos Beccari

Doutorando em Educação na USP, designer gráfico e mestre em Design pela UFPR. Professor substituto no curso de Bacharelado em Design Gráfico na UFPR. Interessa-se por Filosofia, Psicologia e Comunicação, o que o levou a pesquisar sobre Filosofia do Design e a encarar o design como articulação simbólica na mediação ficcional que organiza o real. Além de atuar como professor e pesquisador, coordena o blog Filosofia do Design, integra o podcast AntiCast, é membro do projeto "Cinema e Educação: tela, espelho e janela" (USP-Fapesp) e colabora com outros blogs/revistas de design e comunicação.

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