Sobre acaso e criação estética
O belo não é nem artifício nem natureza, sendo primeiramente acaso. Daí resulta que o ato humano que culmina na criação de belas formas não é irracional, como diz Platão no Ion, mas casual, como o são todos os atos; e além do mais ele não é exatamente criador, se se entende por criação uma modificação trazida ao estatuto do que existe: nesse sentido – que é aquele habitualmente reconhecido à expressão “criação estética” – toda criação é impossível. – Clément Rosset, Lógica do Pior (Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1989, p. 183).
O decreto de que “toda criação é impossível” é somente polêmico e insidioso do ponto de vista por ele denunciado: aquele da criação como excepcional ação de transformar o mundo, pressupondo agentes criadores como únicos aptos a fazê-lo. Com efeito, esta faculdade “criadora” é entendida, nestes termos, como aptidão em transcender o acaso, isto é, como capacidade de ultrapassar a sorte oportuna para conceber deliberadamente coisas belas. É neste sentido que a severidade de Platão em relação aos artistas (no livro X da República) não se referia tanto ao ato mimético, mas à intenção de imitar um modelo que seria propriamente inimitável. Qual seja, algum que torne coerente o sentimento agradável que nasce em todas as ocasiões belas, como uma necessidade sem a qual não perceberíamos o belo.
Em seu famoso diálogo Hippias maior, Platão relata que, ao ser indagado por Sócrates sobre o que é o belo, Hippias responde que o belo é uma bela jovem. O sofista então é julgado como imbecil, por ser incapaz de compreender o simples problema que lhe foi posto, o da generalidade: quer dizer que uma bela jovem explica tudo o que há de belo? O que não consta no diálogo, mas que provavelmente teria dito Hippias (que não à toa era um filósofo de grande renome em seu tempo), é que o belo não é nada mais que uma bela jovem, tal como aparece em um certo momento, aos olhos de um certo homem. Ou seja, não há generalidade alguma uma vez que “o” Belo, enquanto princípio geral, não existe – o que existe é uma infinidade de circunstâncias, de encontros, de ocasiões que por acaso mostram-se agradáveis.
Logo, a recusa do sofista não é em compreender, mas antes em admitir a hipótese da generalidade: a ideia de “uma bela jovem” segue a lógica sofística na qual “uma” prevalece sobre “todas”. Similar é a recusa do artista que não faz muita questão de explicar seu processo criativo: independente de qualquer arrogância, muitas vezes não há o que explicar além de “não sei o que fiz, apenas comecei e terminei”. Mais escandalosa ainda é sua ausência de necessidade: tal como um riso que nasce sem motivo algum, a obra aparece entre a infinidade de combinações de formas visuais, sonoras ou verbais, e a singularidade das circunstâncias que a envolveram. O paradoxo da obra bem-sucedida, pois, reside em seu incontornável aspecto de acidente: uma hora antes, uma folha em branco potencialmente desastrosa; uma hora depois, a revelação a posteriori de uma improvável expressão que a precedia.
Igualmente sem justificativa o artista quer ser recompensado: com um sorriso que não saiba dizer exatamente por que sorri. Por mais difícil que possa ser recusar uma necessidade, motivação ou causa explicativa, a insuficiência disso mediante a obra é o que define a experiência estética – mesmo que tal insuficiência sirva como invólucro metafísico de um modelo inimitável. Por conseguinte, se não há necessidade ou explicação à altura da obra, dois raciocínios são possíveis: ou não há nada a imitar (o que equivale, em última análise, a um modelo inimitável) ou toda imitação implicará necessariamente modificação e acréscimo. Se no primeiro caso a intenção inicial é negada de antemão, será apenas no segundo caso que o artista estará em plenas condições de aprovar sua atividade: o que se modifica e se acrescenta é somente acaso, cuja diversidade solicita imitação para ser reconhecida e aprovada. Dito em outros termos, toda criação é imitação do que existe, isto é, só acrescenta acaso ao acaso.
Tomemos dois casos exemplares, um de negação e outro de aprovação da atividade artística. O primeiro é Leonardo da Vinci, ao menos de acordo com duas análises: a de Freud em Uma lembrança de infância de Leonardo da Vinci (1910), e a de Paul Valéry em Introdução ao método de Leonardo da Vinci (1895). Na perspectiva freudiana, sublimação significa basicamente a transferência das energias sexuais para atividades não sexuais, como a criação estética. Para expor tal teoria, Freud descreveu da Vinci como um caso de “semi-sublimação”, que por conta de uma obsessão estritamente intelectual culminou em frustração. Por sua vez, Valéry é complacente do caráter “penoso” da arte de da Vinci, que neste caso se justifica por uma romântica necessidade de buscar razões para aquilo que, na vida, não se obteve explicações satisfatórias. A famosa afirmação de da Vinci de que “arte é coisa mental” sintetiza sua renúncia em relação ao acaso, sua incapacidade de aceitar suas tendências homossexuais e sua escolha de não celebrar a vida pela arte, mas de repetir nela sua insatisfação.
De fato, buscar razões é inconciliável com reconhecimento do acaso. Mesmo que tenha criado e descoberto coisas revolucionárias, Leonardo da Vinci recusava-se a criar porque não admitia o acaso do que existe e do que se cria. Exemplo oposto é o fotógrafo estadunidense Soul Leiter, cujo olhar voyer, na contramão da fotografia urbana entre 1940 e 1950, capturava momentos delicados, simples e calmos no turbilhão de Manhattan. Para ele, cada fotografia não passava de um lance de dados que, parafraseando Mallarmé, “jamais abolirá o acaso”. Nestas condições, criar implica renunciar qualquer necessidade, recusar qualquer razão em proveito de um ato contraditório por excelência: introduzir um elemento de modificação (acaso) num conjunto cuja auto-modificação não é modificável (acaso). Pressuposto: nada foi criado, nem é suscetível de ser criado, seja pela mão do homem ou de deus, que não seja por uma questão de acaso. Consequência: a aceitação da impossibilidade, assim reconhecida, da criação, é condição necessária e paradoxal da criação estética.
I must admit that I am not a member of the ugly school. I have a great regard for certain notions of beauty even though to some it is an old fashioned idea. Some photographers think that by taking pictures of human misery, they are addressing a serious problem. I do not think that misery is more profound than happiness. – Soul Leiter, Early Color (Göttingen: Steidl, 2013, p. 16).
Fico tentado a dizer que a motivação de Soul Leiter era perdoar os prazeres da vida pelo fato de não serem necessários. Ocorre que nem isso importa: quaisquer que fossem suas razões, nada lhe impediu de criar por acaso (assim como não impediu da Vinci). De qualquer maneira, pois, não é que a criação seja de fato impossível. É que o acaso que a possibilita solicita-nos um consentimento: criar implica acrescentar acaso ao acaso e, portanto, nada criar. Donde podemos concluir que a faculdade criadora é indissociável da aprovação do acaso – ou de uma “vontade de sorte” (volonté de chance), nos termos de Bataille em sua leitura de Nietzsche –, sendo a ação de criar nada mais do que ir ao encontro do acaso (ao invés de dominá-lo ou transcendê-lo como queriam da Vinci e Valéry).
Tenho estudado outros artistas que se alinham a este mesmo pressuposto de Soul Leiter – como Johannes Vermeer, Milan Kundera e Woody Allen –, mas por ora quero me deter a sintetizar tal premissa. No fim das contas, penso que criar é apenas a expressão de um “gosto”, uma capacidade de discernir no acaso dos encontros aqueles que nos são mais agradáveis. É neste sentido que a própria noção de “criação” perde relevância, pelo menos em relação a duas outras noções: a de retenção (reconhecer o momento agradável não antes e nem depois, mas em seu instante mesmo, como que “em queda livre”) e a de antecipação (por experiência de retenção, manter-se preparado para os bons encontros, assimilando métodos e técnicas para tanto). Não se trata de desvalorizar toda intenção de criar, e sim de admitir sua dinâmica de seleção e articulação, tecendo assim uma sensibilidade criativa.
O que quer dizer tal sensibilidade? Não uma inocência, pureza ou qualquer outra idealização do olhar, mas uma disposição constante de afrontar um mundo indecifrável, frequentemente desagradável e que permanece longe de ser previsível. Particularmente, dar aula no lugar onde fui aluno tem sido um estranho contexto para tal sensibilidade: percebo-me cada vez mais sozinho entre pessoas que não me são próximas e que, no entanto, parecem vagamente cativadas. Em contrapartida, uma pequena cena significativa: todos os dias, desde quando eu era aluno, sento-me num banquinho do pátio, na hora do intervalo, para fumar um cigarro. E sempre vejo um professor antigo, não sei de qual curso, sentado no banco da frente. Nunca falei com ele. Recentemente, ao terminar o intervalo, ele levantou a mão como sinal modesto de cumprimento; respondi com o mesmo gesto, que passou a repetir-se desde então.
Não cesso de ver, nesta mão levantada, o mesmo sinal que faço a meus alunos, um gesto distanciado talvez pela idade, talvez pela incompreensão ou talvez pelo mero semblante de um professor que não tem nada a dizer a não ser esta mensagem: estou longe de você, não sei como me aproximar, mas novamente estou aqui, e sei que você está aí. O que vejo nesta mão levantada é a beleza de estar num lugar que se distancia cada vez mais, um lugar que não posso nem reviver nem restituir, mas no qual permaneço. Trata-se também da cena de um livro de Gudbergur Bergsson, “O cisne”, na qual acrescentei uma música do Our Griffins. Trata-se enfim de enxergar o acaso. Enxergar nas obras de outrem tudo o que se passa em nossa vida, enxergar nos encontros e ocasiões tudo o que tomamos emprestado de outrem e, uma hora ou outra, enxergar no papel uma obra que ainda não está ali.
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