Elefante

Por Paula Cruz

Um rasgo na tela. Um respingo no chão. Um mictório na galeria. Convenhamos, você já olhou para tudo isso e só conseguiu se perguntar: como que isso é arte? Sua mãe, então, nem se fala. Acha isso um tremendo dum absurdo. Afinal de contas, por que arte contemporânea é um elefante que incomoda muita gente?

Crescemos com imagens de Madonnas expostas em todos os lugares, fazendo jus à era da reprodutibilidade técnica. A vertente classicista, tradicional e histórica, está enraizada em nossas mentes. Todo nosso background é construído com arte mimética, realista e imponente. Você aprecia uma obra de arte do Caravaggio justamente porque pensa ser incapaz de fazer algo do mesmo nível. Em miúdos: a arte clássica intimida. E estamos acostumados a nos sentir intimidados por ela.

Atire a primeira pedra quem nunca se viu nesta situação da tirinha.

Atire a primeira pedra quem nunca se viu nesta situação da tirinha.

A arte contemporânea não. É convidativa e democrática. Eleva reles objetos aos status de ready-mades, vê o mundo como uma obra de arte em potencial e demonstra que gente normal como eu ou você pode, sim, criar e fazer arte. Ela ensina que artistas podem vir de qualquer lugar.

É também uma visão típica da contemporaneidade libertar-se do museu e das galerias e ver a possibilidade de trabalhar o artístico em lugares comuns. Para Hélio Oiticica, a arte estaria no dia a dia, nas ruas, nas casas, nas atitudes, no mundo. “Museu é o mundo; é a experiência cotidiana”, escreveu em 1966. Isto não significa que tudo no mundo é arte  afirmá-lo seria concordar também que nada é exatamente arte. A questão é que precisaríamos atentar o olhar para perceber as minúcias artísticas do mundo. Oiticica demonstrava que as coisas estão ali, no mundo, prontas para ser experimentadas e se tornar arte.

Os Parangolés de Hélio Oiticica | Após ter aulas de dança e se tornar passista da escola de samba Estação Primeira de Mangueira, Hélio Oiticica levou seu pensamento de que o mundo é arte em potencial para seu próprio corpo. Os parangolés exigem um corpo que dança e se movimenta para  se portarem como obra de arte.

Os Parangolés (1964) de Hélio Oiticica | Após ter aulas de dança e se tornar passista da escola de samba Estação Primeira de Mangueira, Hélio Oiticica levou seu pensamento de que o mundo é arte em potencial para seu próprio corpo. Os parangolés exigem um corpo que dança e se movimenta para se portarem como obra de arte. Hélio enxergou no corpo um instrumento para transformar e fazer arte.

Esta disparidade entre o que aprendemos sobre o que é arte e o que pode sê-la nos deixa desestabilizados. Fernando Cocchiarale aborda a questão colocando todos os pingos nos is:  “habituamo-nos a pensar que a arte é uma coisa muito diferente da vida, dela separada pela moldura e pelo pedestal e, aliás, a arte foi mesmo isso durante a maior parte de sua história. (…) A ideia de uma arte que se confunda com a vida é difícil de assimilar porque os nosso repertório ainda é informado por muitos traços conservadores”. Portanto, avaliar arte contemporânea num viés classicista beira o anacronismo. Você compararia uma sinfonia de Beethoven com os acordes de Rolling Stones?

Incomoda-nos também o quanto arte contemporânea nos deixa desnorteados. Ao problematizar o mundo e buscar uma maneira diferente de analisar tudo que nos cerca, a produção atual desembaralha nossas convenções. O público normalmente se frusta porque é colocado em dúvida, ainda que brevemente, sobre o que está presenciando. É difícil ver uma performance da Marina Abramovic e não se sentir confuso. E isto é ótimo. Um dos papeis da arte é, como diria o poeta, confundir para poder esclarecer.

Imponderabilia (1977) de Abramovic & Ulay | Um casal nu parado justamente na entrada do museu se põe no caminho dos visitantes. É impossível entrar no local sem confrontá-los. Esta performance causa desconforto e nos deixa perplexos. E isto é justamente o que a faz uma obra tão boa. 

Todas estas qualidades não tornam a arte contemporânea intocável. Assim como todo projeto criativo, ela é passível de críticas e desgosto. Indo direto ao ponto: sua mãe não é obrigada a gostar de vídeo-arte. Nem você. Nem mesmo eu, autora deste texto de temática controvérsia. Os parâmetros para analisar a arte atual, tão complexa, multimídia e voraz, devem ser feitos necessariamente com uma generosidade do olhar, no qual os significados estão abertos e distintos. Feito isso, respire despreocupado e deixe a arte contemporânea guiar você. O elefante agradece.

Paula Cruz

Paula Cruz

Paula Cruz é carioca e profissional em formação de design na UFRJ. Paralelamente aos estudos, constroi projetos autorais que unem design, texto e pesquisa, tais como livretos, cartazes e contos ilustrados.

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