A imaterialidade do livro

Por Paula Cruz

Como uma designer que optou pelo vasto mundo dos impressos, poderia-se dizer que aprecio a materialidade dos artefatos – o que, de fato, é uma verdade incontestável. Gosto de tatear um bom acabamento verniz soft polen, amo o cheiro de livros novos e, a grosso modo, sinto a necessidade de ter um livro em minhas mãos. O que me levou, então, a comprar um e-reader mês passado, se meu amor aos livros é uma afeição, também, ao objeto do livro?

A mudança de suportes para a informação nada mais é do que uma reforma do sistema de reprodução. Explico: o a primeira grande dispersão intelectual, isto é, ampliação do conhecimento em relação ao contingente populacional, aconteceu graças a Gutenberg, ao revolucionar o tempo de produção do livro com a descoberta da impressão tipográfica por volta de 1500. Antes as informações eram reproduzidas por monges copistas em seus scriptoriums, o que levava anos – normalmente décadas. Não bastasse este longo tempo de reprodução, os livros eram pesados e enormes, o que os tornava intransportáveis: permaneciam em locais fechados e privados, disponíveis somente aos padres e nobres (que soubessem ler).

Scriptorium, literalmente "um local de escrever", era o local de trabalho onde os monges copistas reproduziam manuscritos na Idade Média.

Scriptorium, literalmente “um local de escrever”, era o local de trabalho onde os monges copistas reproduziam manuscritos na Idade Média.

Sendo bem franca, a analfabetização era quase total na Idade Média e a invenção de Gutenberg não mudou a realidade dos camponeses feudais. Porém, se pensarmos a longo prazo, Gutenberg é um dos maiores contribuidores para a modernidade como a conhecemos. Com o surgimento da burguesia, centenas de anos depois, e a conquista dos ideais burgueses, como direito à educação e à propriedade, a alfabetização e a produção intelectual se tornaram bem mais abrangentes. Foi o  primeiro passo para o que temos hoje – um mundo complexo de intercâmbio informacional.

Outro grande passo para a troca de informações foi o surgimento da internet na década de 90. Trocando em miúdos, a humanidade caminha rumo à globalização – nada mais do que um troca-troca a nível mundial – desde as Cruzadas, mas os últimos anos reduziram a distância da não-coisa de quilômetros a pixels na tela.

Frente ao descontrole informacional que vivemos atualmente, o livro impresso recai num debate penoso a respeito de sua existência frente às mídias digitais. Se a imaterialização de dados é algo cada vez mais certo em nosso dia-a-dia, a que passo estaremos de um mundo real feito de presenças totalmente virtuais?  Qual o valor de um artefato se comparado à sua existência em bytes?

É preciso ressaltar, entretanto, que o fim de imprensa não está próximo. Não por enquanto. Revistas, jornais e livros são um mercado ainda altamente lucrativo e movem dinheiro demais para sofrerem um fim imediato.

Paralelamente a estas questões mercadológicas, vemos cada vez mais experiências gráficas visando o livro como objeto tridimensional. Muito mais do que um simples códex formado por capa e encadernação, é uma tendência o nascimento de projetos que pensam na mobilidade do livro como suporte narrativo. É o caso do livro Tree of Codes, de Jonathan Safran Foer, onde o espaço do objeto é altamente presente no modo que se constroi a história narrada.

Tree of Codes de Jonathan Safran Foer propõe uma debate sobre o espaço do livro, sua narrativa e o modo como lemos histórias. Feito a partir do recorte do conto Street of Crocodiles de Bruno Schulz, Tree of Codes é uma história formada a partir dos recortes nas páginas do livro.

Tree of Codes de Jonathan Safran Foer propõe uma debate sobre o espaço do livro, sua narrativa e o modo como lemos histórias. Feito a partir do recorte do conto Street of Crocodiles de Bruno Schulz, Tree of Codes é uma história formada a partir dos recortes nas páginas do livro.

Pensar no livro como um objeto tridimensional é, muitas vezes, elevá-lo a condição de objeto-arte. Alguns artistas, oriundos das artes plásticas ou do design, realizam edições limitadas ou únicas que transformam o livro num artefato de desejo e de valor inestimável. A falta da reprodução em massa, ausência da figura do cliente e a experimentação criativa aproximam um objeto cotidiano da galeria de arte.

Wanting to hold/Needing to let go (2012) é um trabalho de William Kentridge feito a partir de uma sequência de desenhos em folhas de um livro antigo, onde as ilustrações oscilam entre o campo de animação, projeto editorial e arte.

Wanting to hold/Needing to let go (2012) é um trabalho de William Kentridge feito a partir de uma sequência de desenhos em folhas de um livro antigo, onde as ilustrações oscilam entre o campo de animação, projeto editorial e arte.

Isto tudo implica, paradoxalmente, numa relação de valorização e desvalorização do livro físico. Enquanto os usuários recorrem aos arquivos digitais, os leitores mais tradicionais permanecem no mundo da tinta impressa. São dois públicos distintos que buscam uma não-coisa (informação), mas preferem coisas (suportes) de maneiras distintas. É uma diferença aparentemente banal, mas que demonstra a sutileza da relação que temos com a imaterialidade e sua materialidade.

O folhear do e-reader não está tão distante do folhear do livro – é uma simples adaptação do suporte. A grande diferença entre os dois tipos de leitura é como são visto e, portanto, como se relacionam com o leitor.

O folhear do e-reader não está tão distante do folhear do livro – é uma simples adaptação do suporte. A grande diferença entre os dois tipos de leitura é como são vistos e, portanto, como se relacionam com o leitor.

De uma maneira ou outra, precisamos nos adaptar às transições de formato e suporte físico. O conhecimento, a grosso modo, ainda está nos livros. Veja bem: ainda. A internet, em sua vastidão infinita e intocável, é um espaço não físico que abrange muita, muita não-coisa, mas que se mantém novata quanto à circulação informacional mais aprofundada. A transposição dos dados físicos para o mundo virtual ainda terá uma longa caminhada. Para um verdadeiro mergulho ao pensamento complexo, faz-se necessário uma atitude mais antiquada: buscar o sebo ou biblioteca mais próximos.

Até lá, transita-se entre os dois mundos. Minha pequena biblioteca e meu e-reader agradecem, enciumados. Mal sabem eles que percorrem lado a lado, por meios diferentes, a busca pela mesma não-coisa.

Paula Cruz

Paula Cruz

Paula Cruz é carioca e profissional em formação de design na UFRJ. Paralelamente aos estudos, constroi projetos autorais que unem design, texto e pesquisa, tais como livretos, cartazes e contos ilustrados.

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