Gestaltungsaufgabe ou de como não esgotar aquilo que é só isso
O verbo alemão aufgeben, do qual provém o substantivo Aufgabe, significa “entregar”, no duplo sentido do termo: “dar” (geben) algo a alguém para que cuide disso – por exemplo, entregar uma carta ao correio –, mas também “presentear” alguém, abrindo mão da posse do objeto – por exemplo, entregar uma cidade ao inimigo. A segunda acepção é mais forte no uso intransitivo do verbo: ich gebe auf – renunciar, desistir, entregar-se. Essa ambivalência está presente no substantivo Aufgabe, entendido como “proposta”, “tarefa”, “problema a ser resolvido”, mas no qual ressoam também, e de maneira muito peculiar, as ideias de renúncia, rendição e desistência.
O termo gestaltung, por sua vez, poderia ser traduzido como “formação”, no sentido de conferir uma forma (gestalt) a alguma coisa. Vale retomar aqui uma brevíssima genealogia de tal expressão: entre a Téchne grega e o Ars latino há uma mudança semântica paradigmática, a ponto de quase ressignificar a objeção de Platão em relação à arte e à técnica (a saber, a de que estas trairiam e distorceriam as formas verdadeiras, isto é, as Ideias). Tékton significa “carpinteiro” em grego – o artista ou o técnico é, na Antiguidade, aquele que trabalha com a matéria, hyle (que também significa madeira), de modo a conferir-lhe uma forma. A palavra Ars, por sua vez, é uma contração do latim para os termos gregos téchne e dreh (truque, desvio, artifício). O diminutivo de Ars é articulum, indicando não mais o trato direto com a matéria, mas uma pequena intervenção do olhar sobre a forma. Ars tende a conotar, portanto, artifício, distorção, estratégia. Disso deriva o adjetivo alemão gekünstelt, que significa artificial, distorcido, fictício, simulado.
Não pretendo ir adiante com as inferências etimológicas, quero apenas esboçar um sentido preliminar ao título deste post – ao invés de ausbildung (“formação” em alemão), optei por um neologismo alemão-aportuguesado: gestaltungsaufgabe como “tarefa de dar forma”. A princípio, poderíamos recorrer a Flusser para sustentar a factível relação entre design (dar-forma) e as noções de embuste, engano, cilada e renúncia. Mas não nos atenhamos ao design, ao menos em sua implicação enquanto campo ou atividade. Pensemos numa ampla ideia de “formação”, este itinerário que todos percorrem rumo a um mesmo fim, qual seja, aquele que a todos é informado previamente como “morte”. Neste processo, o gesto de esquiva e o gesto assertivo (design) são um único e mesmo gesto, numa permanente tarefa que ao mesmo tempo forma e des-forma, engaja e renuncia, instaura e suspende, engana e se deixa enganar.
I. Engajar-se para renunciar.
É recorrente o imperativo “formativo” de que não se pode viver à deriva, sem saber aonde se quer chegar. Mas o fato é que, querendo ou não, já sabemos onde iremos chegar: sete palmos abaixo do chão. Compreender este fato, sobretudo compreender que não há absolutamente nada a ser compreendido, é bem diferente de meramente conhecê-lo. Por isso se trata de forma-ação e não de significação: o que se tem a fazer é dar uma “forma”, e não tanto um sentido, ao que de todo modo se conhece. Ocorre que, por ocasião de certa tradição iluminista – que embora extinta mantém-se preservada e embalsamada no coração dos “esclarecidos” –, são muitos os que lançam mão de fórmulas ritualizadas para descobrirem um “sentido da vida” necessariamente já catalogado em algum projeto institucional (escola, família, Estado, classe profissional etc.).
De maneira esquemática, podemos traças duas ideias distintas e antagônicas de formação: a que se define como “projeto”, orientada por um objetivo preciso e uma motivação imutável, e a que se define pela contradição e mudança contínua, sem a pretensão de progredir ou de chegar a algum lugar. Se a segunda concepção, a ser retomada mais adiante, parece minimamente estranha à maioria das pessoas, é porque determinado modus operandi, herdeiro de modelos de organização hierarquizados e enrijecidos, prevalece como responsável pela manutenção e reprodução dos mesmos projetos que emanam do capital, dos interesses do mercado e da ideologia neoliberal vigente nas sociedades ditas “desenvolvidas”. Claro que esta explicação, bem como a dicotomia esquematizada que a precede, corre grande risco de reduzir e reificar um sistema social nada simples e cujos mecanismos de efetivação operam de maneira impregnada e silenciosa.
Receio que essa própria dificuldade, e decorrente preguiça, de abarcar o fenômeno em sua complexidade seja um dos principais fatores que nos levam a naturalizar o aspecto inescapável de seu funcionamento. Empenhemo-nos, pois, em ilustrar este capcioso mecanismo, começando pela clássica relação aluno-professor, relação esta por onde se espera obter algum tipo de formação. Enquanto aluno, quero crer que já houve um momento em que eu pude cultivar um sincero desejo de pensar, de me posicionar e de opinar sobre assuntos diversos, mesmo detestando ter de enfrentar os procedimentos de avaliação, quaisquer que fossem, pois nunca enxerguei espaço algum para pensar frente ao que se coloca necessariamente como categórico e decisivo (as notas/médias). Por ingenuidade absoluta, em algum momento eu já quis encontrar na sala de aula um ambiente calmo, aconchegante, indefinidamente aberto, em que o professor e os colegas dialogassem espontaneamente, e de onde as ideias se elevassem como eternamente novas.
Ocorre que tamanha ingenuidade não me foi censurada de maneira clara e direta. Ao invés disso, o professor me dizia algo como: “você não tem por que temer pensar e debater; nós, professores, estamos aqui para lhe mostrar que suas ideias já foram pensadas antes, que há muito tempo se discute sobre elas, e que o lugar privilegiado que você ocupa aqui serve para desarmá-lo de achismos e lugares-comuns; e que, ademais, se um dia lhe ocorrer alguma ideia útil para a sociedade, é de nós, somente de nós, que tal ideia lhe advém”. Este discurso, além de comovente, é proferido de modo inquestionável, sem a menor brecha para dúvidas e inquietações.
De maneira análoga, o paradigma democrático é enunciado como igualdade de oportunidades, direito de participação em decisões coletivas, pluralidade de ideias, liberdade de defendê-las e expressá-las. Na prática, no entanto, vemos determinados imperativos que sempre voltam à tona – “bandido bom é bandido morto”, fazer justiça com as próprias mãos etc. – e que evidenciam a perpetuação, pela via democrática, das mesmas estruturas de poder. É por isso que o voto popular, por exemplo, enaltecido como “direito do cidadão” a cada eleição, consiste mais na renúncia de participação do que em engajamento político – outorga-se ao candidato que será eleito o direito de representação dos interesses de seus eleitores. Ou seja: “vocês não têm por que temer debater e participar; nós, seus representantes políticos, estamos aqui para lhes dar voz ativa, porque é de nossas propostas governamentais, somente delas, que a voz de vocês advém”.
Não é segredo para ninguém, contudo, que o efetivo poder de decisão não pertence nem aos cidadãos-de-direito, nem aos seus representantes no Estado, mas às corporações transnacionais que regulam a economia e manobram questões centrais que estruturam e organizam as sociedades ditas “democráticas”. É curiosa a ressonância de um velho princípio grego: a aritmética deve ser ensinada nas cidades democráticas, pois ela traz consigo relações de igualdade, mas a geometria só pode ser ensinada nas oligarquias, pois demonstra as proporções na desigualdade. É tentadora a inferência de que, assim como a geometria nunca esteve desvencilhada da aritmética, permanecem duvidosas as implicações de diferentes regimes de gestão pública.
Mesmo os órgãos civis como os de defesa do consumidor, por exemplo, nada mais fazem do que reforçar as mesmas regras democráticas: “você não tem por que temer reivindicar por seus direitos, basta seguir o nosso protocolo para darmos início a um longo processo burocrático que, na melhor das hipóteses, faça retornar algo próximo do dinheiro que você já perdeu” – e como a maior parte da população não possui nem a possibilidade de esperar por isso (buscando então quitar as dívidas o quanto antes), cresce exponencialmente a taxa de endividados tanto quanto o lucro das empresas de empréstimos, linhas de crédito, seguros e planos de previdência.
II. Instaurar para suspender.
Instaura-se, deste modo, uma sensação de impotência total em relação a uma narrativa fatalista que é sistematicamente reproduzida como contraparte necessária para justificar uma “formação cidadã” (projeto de carreira profissional, família e ascensão social). O objetivo é preciso e transparente: sobreviver, via de regra por meio do trabalho, em meio a um sistema fatal de produção e consumo. No interior deste tipo de projeto, a escola, a ciência, a cultura e mesmo nossas relações sociais são concebidas como sistemas de produção de mercadorias como outro qualquer. Por conseguinte, determinados critérios valorativos são universalmente seguidos: aprovação significa satisfação de quem paga, qualidade significa padronização, experiência significa automatização do trabalho, conhecimento significa acúmulo de diplomas, sabedoria significa resignação e distração, flexibilidade significa subordinar-se a novas exigências.
Os indivíduos que se “formam” neste processo são separados, por si mesmos, em dois grandes blocos: os que venceram e os que fracassaram – ainda que os limites dessa fronteira sejam cada vez mais imprecisos e dependam do que é diluído de um lado a outro. Com a contínua expansão do setor terciário, e não tanto do industrial, cada vez menos indivíduos precisam estar envolvidos diretamente nos processos de produção, passando então para processos de ampliação do consumo – seja pelo manuseio da retórica do consumo (vendas, publicidade, marketing, design, administração etc.) ou pela manutenção da produção (saúde, educação, segurança etc.). Isso gera, dentre outras coisas, a possibilidade de flexibilização do trabalho ao mesmo tempo em que se aumenta exponencialmente as horas de trabalho em empregos paralelos, múltiplos e precários.
Em outros termos, vemos um enunciado mercadológico que exige disponibilização total das pessoas para o trabalho, ao mesmo tempo em que abre mão da necessidade de legitimar tal exigência por meio de uma ética do trabalho. O que não impede, contudo, de os trabalhadores perceberem a si mesmos como elite privilegiada, não porque tenham qualificações ou méritos, mas porque foram selecionados, em última instância, puramente ao acaso dentre uma massa de indivíduos tão aptos quanto eles. E embora o trabalho permaneça como horizonte de reconhecimento no interior das condutas hegemônicas no capitalismo contemporâneo, persiste a crença “esclarecida” de que a grande massa de trabalhadores permanece cada dia mais alienada, isto é, (duvidosamente) não interessada em sua própria emancipação e autonomia.
Quer dizer, perante um projeto obrigatório e inquestionável que se eufemiza sob a forma de direitos, valores e conquistas, acredita-se que desigualdades sociais são apenas consequências da falta de uma educação “adequada” que, por sua vez, teria por missão a (con)formação de cidadãos. Almeja-se com isso formar cidadãos conscientes, idealmente capazes de “transformar” a realidade social por meio do exercício democrático, mas que na prática poderão somente negociar sua própria força de trabalho como mercadoria em demasiada oferta. Em universidades e órgãos de pesquisa, este projeto é o que fundamenta os crescentes investimentos de integração para com as demandas do mercado de trabalho (ainda que, em princípio, a tríade acadêmica ensino-pesquisa-extensão não tenha que prestar contas às empresas – por enquanto). Paralelamente, a interação social cotidiana tende a incorporar esta mesma dinâmica de integração, conferindo às relações pessoais um caráter de esporte, performance e superação contínua.
III. Reprimir para se deixar enganar.
Boa parte da crítica intelectual do século XX seguiu a receita freudiana de que “toda cultura deve necessariamente edificar-se sobre a repressão e a renúncia pulsional”. O conceito de supereu foi a maneira que Freud encontrou para explicar um processo no qual socialização e repressão convergiam, especialmente na dinâmica que estrutura vínculos e modelos (como família, casamento, o Estado etc.) a partir da gênese da consciência moral, do sentimento de culpa, dos ideais sociais do “eu” e da internalização da lei simbólica. Por conseguinte, foram muitos os sociólogos que levaram adiante esta ideia de uma possível influência recíproca entre pulsões individuais e reprodução econômica. Contudo, teóricos como os da Escola de Frankfurt e Jacques Lacan perceberam modificações substanciais que apontam para uma espécie de “sociedade (aparentemente) não repressiva”, vinculada à universalização das práticas de consumo.
É verdade que uma consciência moral fundada na repressão de moções pulsionais teve importância decisiva no desenvolvimento do capitalismo como sociedade de produção. Vemos nos escritos de Max Weber uma explicação possível para a prática, mediada pelo trabalho, de acumulação ascética de bens, isto é, este princípio “irracional” burguês pautado pelo “cumprimento do dever” e pela renúncia ao gozo daquilo que se acumula. Ocorre que tanto a hipótese weberiana (de uma ética protestante do trabalho e da produção capitalista) quanto a freudiana (da instrumentalização repressiva do sentimento de culpa) correram o risco de sustentar fórmulas “emancipatórias” a partir das quais a compreensão da complexidade do tecido social limita-se à repetição de um único processo histórico de repressão (sexual, moral, religiosa).
Embora toda socialização seja desde sempre normativa, no sentido de aspirar a uma validade legitimada por convenções e instituições, este vínculo a uma função repressiva ou ascética é nada mais que uma hipótese não comprovável. Em sua História da sexualidade, Foucault insiste que as tecnologias de si, próprias ao mundo burguês moderno, não podem ser compreendidas como meros dispositivos de repressão contra um corpo libidinal metafisicamente pressuposto, como um substrato natural que apareceria como base para as operações de poder. Ao propor, então, que abandonemos tal metafísica que sustenta a ideia de uma sexualidade reprimida por razões econômicas, Foucault quer compreender a modernidade como um longo processo de constituição, ao invés de repressão, da sexualidade, sendo esta entendida como implementação de um poder disciplinar que engendra tanto mecanismos de incitação quanto de resistência e renúncia.
Quero com isso me ater ao fato de que o verdadeiro poder não se efetiva apenas em operações de gestão coerciva de condutas sociais, mas principalmente na gestão dos próprios modos de resistência ao poder. Sob este ponto de vista, é possível notar que qualquer hipótese repressiva parte da pressuposição de um corpo libidinal “naturalizado”, pretensamente irredutível a uma condição discursiva. Por isso que, diante do atualmente difundido “direito ao gozo” e da plasticidade aparentemente infinita das possibilidades de escolha no universo do consumo contemporâneo, a noção de mecanismos sociais repressivos foi paulatinamente revista por Foucault e vários outros pensadores. Com efeito, retomando a problemática da formação: para além dos sistemas produtivos que nos são impostos para a sobrevivência diária, para além de uma economia libidinal dos papéis a serem ocupados e reproduzidos nesse mesmo sistema, o logro que perpassa toda noção de formação não é apenas uma sensação de estar sendo enganado, mas especialmente a constatação de estar desde sempre enganado quanto aos próprios motivos e intenções que concernem a um projeto de não se deixar enganar.
IV. No que tange à forma, apenas o erro está garantido.
Arrisco-me a dizer, a título provocativo, que qualquer tipo de formação somente se deixa perceber por meio da sensação de ter se enganado sobre algo e ao fazer acontecer o que parecia estar sendo evitado. É uma proposição insuficiente, que nos incita ao erro, ao prazer da palavra volátil e à dinâmica neguentrópica (de criar ordem a partir da desordem) da frase inquietante de um enunciador que não cessa de escapar de si mesmo para ver e fazer-ver uma nova possibilidade de interpretação a cada expressão que se repete. Parece-me que este caminho, na abertura consciente ao indizível – ao que talvez apenas a arte consiga, em parte, tocar –, ainda nos permite privilegiar uma noção mais ampla de formação, então mais ligada à contradição e à mudança contínua, sem a pretensão de progredir ou de chegar a algum lugar.
Para retomar o título deste ensaio, proponho pensarmos numa tarefa que envolve um tipo peculiar de renúncia, qual seja, aquela que desiste de encontrar algum sentido/causa/função e que, por isso mesmo, paradoxalmente continua a fazê-lo. Ou ainda uma espécie de projeto que se empenha em projetar um “acontecer” sem que nenhum acontecimento seja projetado nem representado antes que acontecimentos efetivamente ocorram. Sei que colocando assim parece um tanto abstrato, mas quero dizer que, por exemplo, toda vez que começo a escrever, dar aula ou simplesmente expressar uma ideia, preciso desapegar-me de boa parte do que eu queria realmente dizer, como se eu não fosse mais o enunciador de meu pensamento e sim quem possibilita sua distorção, sua contestação e seu desaparecimento.
E ainda assim eu continuo, como se houvesse um ímpeto permanente de que é preciso continuar, numa estranha vontade de que cada pensamento seja perdido ou abandonado para que, somente assim, ele possa ser encontrado por outrem que o faça florescer. Nem sempre a intenção é esta, e em grande parte das vezes qualquer intenção é frustrada. Seria muito fácil, perante tal enunciado, insistir numa ordem inconsciente perversa tão interiorizada que chega a administrar meus gestos e pensamentos sem que eu perceba. Mas me parece muito mais sensato atribuir a culpa da frustração ao próprio pensamento frustrado ao invés de relegá-la ao acontecimento frustrante ou a qualquer ordem invisível que esteja por trás das intenções e dos acontecimentos.
Acho interessante como, sob o ponto de vista da formação (entendida como percurso que nos permite perceber a nós mesmo como seres existentes, partindo da inexistência e destinando-se novamente à inexistência), a forma prevalece sobre o significado: penso que alguma coisa vai acontecer num dado momento, mas a forma como essa coisa acontece ou deixa de acontecer reconfigura a forma de meu pensamento sobre ela. Posso pensar, por exemplo, que as decisões tomadas pela gestão pública de onde eu vivo, ou mesmo decisões tomadas por meus chefes ou meus pares, passam longe de meus interesses. E que ainda, na pior das hipóteses, seja uma decisão que me pega de surpresa, fazendo acontecer algo que nunca pensei antes, do qual nunca tive a menor ideia que poderia acontecer. Diante disso, o mais fácil seria entregar-me à sensação de ter sido enganado por uma fatalidade onipotente e astuciosa, que frustra de maneira impregnada e silenciosa todos os meios empregados para fazer frente a ela.
Não que seja certo ou errado pensar assim, mas qualquer esforço empregado em tal pensamento será direcionado ao significado, ao sentido do acontecimento, às causas naturais das quais ele culminou. Acontece que, sob o ponto de vista da forma do “acontecer” e do “pensar”, é a sensação de ter sido enganado que é, ela própria, enganadora. Ao se realizar, o acontecimento não faz outra coisa senão realizar-se. E por mais que eu tenha pensado calculada e rigorosamente como ele se realizaria, o fato é que ele não tomou o lugar de outro acontecimento possível. Este é, a propósito, o aspecto mais interessante que vejo em Kafka: não importa o motivo, a causa ou o significado dos acontecimentos, eles já foram previstos de antemão e sua realização não contradiz nenhuma expectativa. O absurdo kafkiano, pois, não é apenas a realização de um fato tal como se previa, mas principalmente o fato que surpreende paradoxalmente pela realização prevista.
Noutras palavras, em Kafka, entre o acontecimento anunciado e o acontecimento efetuado, não há mudança alguma de significado, mas sim de forma, de perspectiva, de posição do olhar. Nos romances de Milan Kundera, por sua vez, vejo uma estratégia que, embora estruturalmente diferente, acarreta a mesma ênfase na forma: a ambiguidade de significado de cada acontecimento narrado não consiste no desdobramento de uma história com dois sentidos possíveis, como que deixando versões alternativas em aberto; consiste, ao contrário, na coincidência de vários sentidos que, no decorrer da história, deixam de contradizer um ao outro. Curioso é que tal manobra passa sempre pela frustração, pela renúncia de expectativas e pela reconfiguração de sentidos preestabelecidos (convenções, expectativas, temores etc.).
Com isso estou querendo apenas elucidar como compreendo esta tarefa de dar-forma que implica a formação: um esforço de fazer coincidir num mesmo “eu” aquele que já somos àquele outro que procuramos ser – e também, vale dizer, àquele que evitamos ser, isto é, quando percebo naquele que eu denuncio eu mesmo sendo denunciado. Logo, se a formação somente é percebida pela sensação de engano, como eu disse anteriormente, não é simplesmente porque ela se impõe pela frustração, como num esquema caricato de “no pain, no gain”; o engano é útil porque ele próprio é enganador, porque se esperava algo diferente que, em última instância (na tarefa de dar-forma), acaba de algum modo por coincidir com aquilo que supostamente o contradiz.
Dar-forma implica não negar o acontecimento, e sim compreender como é que ele coincide com ele próprio e com o que se esperava dele. Quando dizemos “era justamente isto!” é quando operamos esta paradoxal tarefa de formação, que implica ao mesmo tempo um reconhecimento, uma renúncia e uma criação: reconhecimento de que o fato não se produziu de outra maneira, renúncia daquilo que deveria ter acontecido (como mais plausível ou mais desejável) e criação de novas relações de sentido para manter em vista o acontecimento tal como ele efetivamente aconteceu. Esta tarefa mostra-se útil quando o que acontece contraria nossas expectativas, mas é especialmente necessária quando o que acontece satisfaz nossas expectativas: o acontecimento continua a decepcionar por eliminar qualquer outro modo de realização.
Só que, novamente, tal frustração não advém senão do pensamento que reconhece no acontecimento um decreto arbitrário, decepcionante ou não, de que aconteceu isto e não outra coisa. É neste sentido, diga-se de passagem, que a linguagem oracular perdurou durante milênios na socialização humana: “não se escapa do destino” não diz respeito a um futuro inevitável, mas tão somente ao caráter imprevisível do presente, ao acaso inelutável daquilo que acontece a todo instante e, sobretudo, à necessidade de lidarmos com isso porque é só isso que existe. Acredito inclusive que, na tarefa de dar-forma, o pensamento ainda atua pela via oracular: não como tendo uma história linear e progressiva, mas privilegiando a constituição de espaços, de uma geografia movente que reorganiza os próprios eixos e orientações pelos quais se move.
Dito de outro modo, a importância de um acontecimento reside na reprodução, pelo pensamento, do próprio acontecimento. Reproduzir um acontecimento não é buscar seu significado, mas recriar sua forma de acontecer (diferença deleuziana que se conjuga na repetição). Cabe aqui retomarmos a noção de articulum que se inscreve na de gestaltung: deslocamento, disfarce, dissimulação e recriação são sentidos correlatos não à pretensão de descobrir algo, mas à potência de re-conhecer-se em algo. Reconhecer-se em algo, por sua vez, é falar em seu próprio nome usando o nome de outro, como uma máscara distorcida que me permite reconhecer-me no que me acontece, como um encontro fortuito, como um aqui e agora, independentemente da fidelidade ou infidelidade em relação aos pensamentos que são gerados a todo instante.
É como se houvesse uma obra sendo aos poucos construída, nunca finalizada, e cujos fragmentos possuem entre si uma sintonia nem sempre constante, necessariamente sem qualquer referência a uma unidade ou totalidade. Claro que um projeto pode facilitar tal processo, mas desde que se mantenha “em projeto”, isto é, vulnerável a torções contínuas a fim de ser integrado a suas próprias questões; portanto, uma espécie de projeto à posteriori, posto a serviço da própria obra que dele advém. Podemos trabalhar como se tivéssemos sempre um saco em mãos e, ao encontrarmos alguma coisa que sirva, colocamos dentro nesse saco – o fato é que, mesmo que tal critério não mude, a forma do saco se altera a cada vez que inserimos uma coisa nova dentro dele.
Por isso que, conscientes disso ou não, importando-nos ou não com isso, não cessamos de recriar e relacionar, pelo processo de formação, “novos” pensamentos que já tivemos antes, em situações similares ou totalmente diferentes, sempre em proveito da (re)construção permanente de uma obra que afirma o “eu” pela diferença, e não pela identidade, em relação a si mesmo. Se analisarmos a obra de Deleuze, por exemplo, vemos que até mesmo conceitos de filósofos aos quais ele se opõe (Kant, Hegel, Marx etc.) são objeto de um “roubo” que desfaz a teia conceitual em que tais conceitos se encontram originalmente inseridos, desconsiderando totalmente as consequências que acarretam nos sistemas em que foram produzidos, para torná-los elementos da filosofia deleuziana da diferença. Creio que é somente neste sentido, neste procedimento de roubo ou dissimulação, que a filosofia de modo geral pode servir à formação: não como caminho de ascensão ou iluminação (o “sair da caverna” platônico) por algum princípio “do alto”, como o Bem e a Verdade, mas como expressão “profunda por superficialidade” acerca da impossibilidade de um ponto de partida, de um fundamento e de uma finalidade para a vida.
“[…] atrás de toda caverna há outra mais profunda, um mundo mais vasto, mais estranho, mais rico sob a superfície, um abismo abaixo de todo fundo, além de toda fundação”, diz Nietzsche em Além do bem e do mal (§ 289), o mesmo Nietzsche que critica a profundidade do pensamento e para quem os gregos eram “superficiais por profundidade”. Necessário notarmos que o esforço nietzschiano é o de abolir a oposição tradicional entre superfície e profundidade, concebendo esta última como sendo apenas uma “dobra” da superfície – ou ainda, “o mais profundo é a pele”, como diz a expressão de Valéry que Deleuze tanto menciona. Porque é na superfície da vida cotidiana, na trivialidade dos acontecimentos previsto ou imprevistos, pensados ou impensáveis, que os significados irradiam em todas as direções, sem referência ao que quer que seja, por pura contiguidade da forma, em direção a esta obra inacabada, sempre em formação, por onde experimentamos ao mesmo tempo a ausência de sentido e nossa carência de sentido – e por onde se cruzam as questões que me coloco agora.
Daí surge a sensação de que talvez isto ou aquilo já tenha acontecido, de que talvez eu já tenha pensado nisso ou de que já tenham me falado algo parecido, e então eu me surpreendo ao notar as mesmas incidências que, no entanto, se abrem e se articulam por um percurso diferente, um pensamento diferente, uma situação diferente, pessoas diferentes. Ao menos é esta a sensação que particularmente tem me ocorrido desde o momento em que tive a oportunidade de dar aula no mesmo lugar onde “formalmente” eu me formei, lugar este que, por vezes, mostra-se estranho à minha formação. Parece inevitável, nessa circunstância, questionar o que significa esta formação que não se esgota num diploma ou num lugar específico, mas que retorna como tarefa cada vez mais “desinformada”, sobretudo na participação da formação alheia, como um processo de recorrência daquilo que se apaga no desejo mesmo de reencontrar-se consigo mesmo, com uma mesma ideia, com aquilo que desapareceu ou foi esquecido.
Acho engraçado reconhecer que no fim das contas é “só isso”, um retorno sempre diferente de um mesmo “nada”, e que o que resta de tão difícil em participar da formação alheia não é a voz que nunca escuto soar de meu discurso, nem mesmo a imprevisível reação ou falta de reação daqueles que esperam entender alguma coisa no que eu digo. O mais difícil é tomar a palavra neste lugar de onde outrora ela me foi dirigida e onde não estou mais presente para escutar-me.
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