O muralismo mexicano

Por Carol Zanelatto

Um imaginário possível e uma memória cultural latina

Exploração, condições precárias, opressão: o primeiro parágrafo da história das revoluções geralmente se conforma com essas questões. Campesinato, revolta, tomada: foi exatamente nesse contexto que a Revolução Mexicana se configurou no início do século XX, a partir de 1910, como uma das mais importantes revoltas populares da América Latina.¹

A década de 20 foi marcada como um momento de instabilidade política muito forte no México. Como a revolução tinha ‘chegado ao poder’, o contexto pedia a unificação do povo – o momento do pensar, de construir uma identidade nacional. Como as raízes mexicanas foram diretamente integradas no movimento revolucionário, era necessário pensar em quem era esse povo, quem constituía essa ‘nação’. Paralelo a esse contexto, o movimento modernista, que se firmou como uma forte corrente de vanguarda nas artes – nessa época – propunha, entre outras coisas, uma discussão acerca das nacionalidades.

É nessa conjuntura que o movimento Muralista aflora num México pós-revolucionário, catalisado pelo sentimento libertador da revolução: o momento em que o povo derruba o ditador e começa a buscar seus próprios interesses – e tem como tema macro a independência da América espanhola – um momento de quebra da dominação política da metrópole e o nascimento dos estados nacionais.

Diego Rivera - The Mechanization of the Country ( 1926)

Diego Rivera – The Mechanization of the Country (1926)

É dessa forma que Diego Rivera, David Siqueiros, José Orozco – considerados ‘los tres grandes’ – pintam uma série de murais nos palácios públicos, no objetivo de  retomar a temática social, sendo vistos, como precursores de uma arte pública em função de seu compromisso político bem como seu apelo visual; era necessário romper com as estéticas europeias e propor uma arte que fosse do povo e para o povo: nesse momento, a pintura sai do cavalete e dos espaços fechados, simbolizando que não mais pertence a uma pessoa, e sim ao povo, e vai para as paredes – “muros” – dos edifícios públicos, daí o nome.

Explanando a questão da identidade, é possível observar nesses murais, de uma forma geral, o retrato desse povo: a civilização asteca, o índio, o colonizador, o mestiço, pois isso criava o sentimento de “pertencimento”. Afinal, índios e mestiços tiveram um papel fundamental no processo revolucionário mexicano e como a questão “índio” é um tema recorrente na história de toda a América Latina, bem como a questão da mestiçagem, registrar o passado hispânico foi fundamental para a construção de uma identidade nacional.

David Alfaro Siqueiros – Del Porfirismo a  La Revolución (1954)

David Alfaro Siqueiros – Del Porfirismo a La Revolución (1954)

Diego Rivera - The History of Mexico (1929-35) Afresco representa o México do passado e o México do futuro: vemos a civilização Asteca abaixo, passando pelos camponeses e acima, os líderes da Revolução. Ao centro, a águia, símbolo da nação

Diego Rivera – The History of Mexico (1929-35)
Afresco representa o México do passado e o México do futuro: vemos a civilização Asteca abaixo, passando pelos camponeses e acima, os líderes da Revolução. Ao centro, a águia, símbolo da nação.

Enquanto vanguarda, o Muralismo supera a imagética barroca da época e retoma a preocupação do realismo de Gustave Courbet, que é voltado para a temática social e para a pintura de trabalhadores e cenas cotidianas, sem se desvincular, contudo, da arte moderna. Apesar das influências de afrescos renascentistas, de arte pré-hispânica e do cubismo, o movimento conserva uma estética própria, desenvolvendo a construção da memória plástica da revolução mexicana: uma beleza que surge da luta. Com isso, o movimento propõe uma arte indissociável da política, indicando à arte uma função didática, isto é, apresentando-a como mensagem política e com linguagem simples.

Apesar de não entrar no mérito dessa discussão, é importante citar que não há como desvincular as pinturas do mecenato do Estado – e sua relação paradoxal com os ideais muralistas: elas funcionaram, sim, como um meio de propaganda dos ideais revolucionários.

José Clemente Orozco - Gods of the Modern World - The Epic of American Civilization (1926)

José Clemente Orozco – Gods of the Modern World – The Epic of American Civilization (1926)
A estética muralista se utiliza de uma série de símbolos da cultura mexicana, aproximando-se do povo e de sua história.

Seja em Rivera com o retrato do índio ou em Siqueiros com a revolução proletária, fato é que simbolizam resistência mexicana à dominação: pode-se talvez entender que o movimento Muralista caracteriza sua representação a partir de símbolos da cultura do povo e do imaginário social. O resultado disso, mais do que criar uma identidade nacional dentro do México, foi fazê-lo em boa parte da América latina: o Muralismo teve um importante papel na difusão desses “ideais” para todo o seu território-abaixo, completando quase um século.

Miguel Alandia Pantoja - Reforma Educativa Y Voto Universal , Bolívia (1964)

Miguel Alandia Pantoja – Reforma Educativa Y Voto Universal , Bolívia (1964)

Atualmente, por exemplo, essa manifestação aparece articulada especialmente com os movimentos libertários, em países como Argentina, Chile, Bolívia, Brasil. A produção desses grupos dialoga em uma estética própria e comum: desenvolvidas como intervenções na rua, possuem uma composição dinâmica, de rostos figurativos que se estendem a uma “configuração” coletiva mais próxima – algumas de suas questões estéticas são, por exemplo, pensadas para diminuir o tempo de desenho e facilitar a participação de todos, como àqueles que não têm o domínio da técnica.

Unidad Muralista Luchador Ernesto Miranda - Mural em Temuco, Chile (2012)

Unidad Muralista Luchador Ernesto Miranda – Mural em Temuco, Chile (2012)

Coletivo Muralha Rubro Negra - Mural em Porto Alegre, Brasil

Coletivo Muralha Rubro Negra – Mural em Porto Alegre, Brasil

Dessa forma, pode-se talvez entender que o muralismo atua de uma forma geral, como um discurso da imagem e também propaganda – no sentido de que sempre estará vinculada à construção e difusão de uma ideia. O caso do “representar” o povo através de símbolos culturais abre espaço para pensar uma série de questões em relação a essa imagem que opera no imaginário do povo, ou essa arte que constitui o universo simbólico. De qualquer forma, pensar como esse movimento foi disparador para o desenvolvimento de uma cultura mural na América Latina parece indicar que ele representa uma identidade Latina no campo da arte – uma representação de uma memória cultural do nosso continente.

Notas:

¹ Não cabe aqui discutir isto ou aquilo da Revolução Mexicana, mas apenas usá-la como referência para contextualizar o movimento em questão.

Carol Zanelatto

Carol Zanelatto

é estudante de Design de Produto da UFPR e mantém um caso de amor entre tantas outras coisas, com você, o mundo, a arte e a CORDe Curitiba

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O muralismo mexicano

Por Carol Zanelatto

Um imaginário possível e uma memória cultural latina

Exploração, condições precárias, opressão: o primeiro parágrafo da história das revoluções geralmente se conforma com essas questões. Campesinato, revolta, tomada: foi exatamente nesse contexto que a Revolução Mexicana se configurou no início do século XX, a partir de 1910, como uma das mais importantes revoltas populares da América Latina.¹

A década de 20 foi marcada como um momento de instabilidade política muito forte no México. Como a revolução tinha ‘chegado ao poder’, o contexto pedia a unificação do povo – o momento do pensar, de construir uma identidade nacional. Como as raízes mexicanas foram diretamente integradas no movimento revolucionário, era necessário pensar em quem era esse povo, quem constituía essa ‘nação’. Paralelo a esse contexto, o movimento modernista, que se firmou como uma forte corrente de vanguarda nas artes – nessa época – propunha, entre outras coisas, uma discussão acerca das nacionalidades.

É nessa conjuntura que o movimento Muralista aflora num México pós-revolucionário, catalisado pelo sentimento libertador da revolução: o momento em que o povo derruba o ditador e começa a buscar seus próprios interesses – e tem como tema macro a independência da América espanhola – um momento de quebra da dominação política da metrópole e o nascimento dos estados nacionais.

Diego Rivera - The Mechanization of the Country ( 1926)

Diego Rivera – The Mechanization of the Country (1926)

É dessa forma que Diego Rivera, David Siqueiros, José Orozco – considerados ‘los tres grandes’ – pintam uma série de murais nos palácios públicos, no objetivo de  retomar a temática social, sendo vistos, como precursores de uma arte pública em função de seu compromisso político bem como seu apelo visual; era necessário romper com as estéticas europeias e propor uma arte que fosse do povo e para o povo: nesse momento, a pintura sai do cavalete e dos espaços fechados, simbolizando que não mais pertence a uma pessoa, e sim ao povo, e vai para as paredes – “muros” – dos edifícios públicos, daí o nome.

Explanando a questão da identidade, é possível observar nesses murais, de uma forma geral, o retrato desse povo: a civilização asteca, o índio, o colonizador, o mestiço, pois isso criava o sentimento de “pertencimento”. Afinal, índios e mestiços tiveram um papel fundamental no processo revolucionário mexicano e como a questão “índio” é um tema recorrente na história de toda a América Latina, bem como a questão da mestiçagem, registrar o passado hispânico foi fundamental para a construção de uma identidade nacional.

David Alfaro Siqueiros – Del Porfirismo a  La Revolución (1954)

David Alfaro Siqueiros – Del Porfirismo a La Revolución (1954)

Diego Rivera - The History of Mexico (1929-35) Afresco representa o México do passado e o México do futuro: vemos a civilização Asteca abaixo, passando pelos camponeses e acima, os líderes da Revolução. Ao centro, a águia, símbolo da nação

Diego Rivera – The History of Mexico (1929-35)
Afresco representa o México do passado e o México do futuro: vemos a civilização Asteca abaixo, passando pelos camponeses e acima, os líderes da Revolução. Ao centro, a águia, símbolo da nação.

Enquanto vanguarda, o Muralismo supera a imagética barroca da época e retoma a preocupação do realismo de Gustave Courbet, que é voltado para a temática social e para a pintura de trabalhadores e cenas cotidianas, sem se desvincular, contudo, da arte moderna. Apesar das influências de afrescos renascentistas, de arte pré-hispânica e do cubismo, o movimento conserva uma estética própria, desenvolvendo a construção da memória plástica da revolução mexicana: uma beleza que surge da luta. Com isso, o movimento propõe uma arte indissociável da política, indicando à arte uma função didática, isto é, apresentando-a como mensagem política e com linguagem simples.

Apesar de não entrar no mérito dessa discussão, é importante citar que não há como desvincular as pinturas do mecenato do Estado – e sua relação paradoxal com os ideais muralistas: elas funcionaram, sim, como um meio de propaganda dos ideais revolucionários.

José Clemente Orozco - Gods of the Modern World - The Epic of American Civilization (1926)

José Clemente Orozco – Gods of the Modern World – The Epic of American Civilization (1926)
A estética muralista se utiliza de uma série de símbolos da cultura mexicana, aproximando-se do povo e de sua história.

Seja em Rivera com o retrato do índio ou em Siqueiros com a revolução proletária, fato é que simbolizam resistência mexicana à dominação: pode-se talvez entender que o movimento Muralista caracteriza sua representação a partir de símbolos da cultura do povo e do imaginário social. O resultado disso, mais do que criar uma identidade nacional dentro do México, foi fazê-lo em boa parte da América latina: o Muralismo teve um importante papel na difusão desses “ideais” para todo o seu território-abaixo, completando quase um século.

Miguel Alandia Pantoja - Reforma Educativa Y Voto Universal , Bolívia (1964)

Miguel Alandia Pantoja – Reforma Educativa Y Voto Universal , Bolívia (1964)

Atualmente, por exemplo, essa manifestação aparece articulada especialmente com os movimentos libertários, em países como Argentina, Chile, Bolívia, Brasil. A produção desses grupos dialoga em uma estética própria e comum: desenvolvidas como intervenções na rua, possuem uma composição dinâmica, de rostos figurativos que se estendem a uma “configuração” coletiva mais próxima – algumas de suas questões estéticas são, por exemplo, pensadas para diminuir o tempo de desenho e facilitar a participação de todos, como àqueles que não têm o domínio da técnica.

Unidad Muralista Luchador Ernesto Miranda - Mural em Temuco, Chile (2012)

Unidad Muralista Luchador Ernesto Miranda – Mural em Temuco, Chile (2012)

Coletivo Muralha Rubro Negra - Mural em Porto Alegre, Brasil

Coletivo Muralha Rubro Negra – Mural em Porto Alegre, Brasil

Dessa forma, pode-se talvez entender que o muralismo atua de uma forma geral, como um discurso da imagem e também propaganda – no sentido de que sempre estará vinculada à construção e difusão de uma ideia. O caso do “representar” o povo através de símbolos culturais abre espaço para pensar uma série de questões em relação a essa imagem que opera no imaginário do povo, ou essa arte que constitui o universo simbólico. De qualquer forma, pensar como esse movimento foi disparador para o desenvolvimento de uma cultura mural na América Latina parece indicar que ele representa uma identidade Latina no campo da arte – uma representação de uma memória cultural do nosso continente.

Notas:

¹ Não cabe aqui discutir isto ou aquilo da Revolução Mexicana, mas apenas usá-la como referência para contextualizar o movimento em questão.

Carol Zanelatto

Carol Zanelatto

é estudante de Design de Produto da UFPR e mantém um caso de amor entre tantas outras coisas, com você, o mundo, a arte e a CORDe Curitiba

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