O guarda-chuva invisível de Duchamp

Por Marcos Beccari

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De fato, nada até agora teve uma mais ingênua força persuasiva do que o erro do ser, tal como foi, por exemplo, formulado pelos eleatas: pois esse erro tem a seu favor cada palavra, cada proposição que nós falamos! – Nietzsche, Crepúsculo dos Ídolos ou como filosofar com o martelo (Obras Incompletas, Editora Nova Cultural, 1999, § 5, p. 375).

I. Da ilusão metafísica e sua contenda dialética

Em O nascimento da tragédia, Nietzsche refere-se a Sócrates como pioneiro na instalação de uma representação ilusória que assinalou o paradigma da filosofia ocidental: a metafísica, esta crença de que o pensamento pode nos revelar uma ordem inteligível, portanto destacável e nomeável, presente em relações aparentemente desordenadas. Com Platão e Aristóteles, passando por todos os pensadores posteriores tidos como sérios e reputáveis, estaria inaugurada uma grande busca por uma realidade ordenada, gratificante, em detrimento das imperfeições que poderiam então, e só então, ser percebidas e devidamente corrigidas.

Sob o olhar metafísico, o real imediato é somente admitido e compreendido na medida em que expressa outro real, qual seja, o único que lhe confere sentido e realidade propriamente. Este mundo aqui seria como uma sombra, um sucedâneo enganador, de outro mundo – ainda que este outro resida aqui mesmo, aguardando alguma revolução, êxodo, redenção, evolução etc. A dimensão sensível seria considerada insatisfatória justamente por nunca estar à altura de seu modelo oculto que, como chave de um conjunto maior, possibilitaria ao homem acreditar-se independente dos processos que o constituem.

Esta recusa das multiplicidades em nome de uma unidade que as engloba, embora precipitadamente já condenada ao declínio, permanece mais vigente do que nunca. Não apenas no retorno de fundamentalismos religiosos, científicos e filosóficos, mas especialmente nas narrativas de autoajuda, nos placebos eleitorais e em qualquer lamentação que pressuponha certo estatuto de superioridade. Mesmo a incompatibilidade de crenças, as distopias, o mercado absolutista e, sobretudo, a ausência de uma visão racional e organizada do mundo, o dito niilismo pós-moderno, tudo isso se coaduna com a ilusão metafísica.

O niilismo, com efeito, enquanto desejo de negar a vida em proveito de nada, é para Nietzsche exatamente a premissa da metafísica, cujo empreendimento (o além) coincide com nada. Trocar um pelo outro, pois, se conjuga apenas no âmbito formal, conservando as mesmas razões tanto para um lado quanto para o outro. A dialética transcendental kantiana, por exemplo, parte de antíteses que comportam uma contraparte à ilusão metafísica; não obstante, Kant é o modelo do pensador que pensa de maneira ao mesmo tempo metafísica e não metafísica. Sua comichão dialética, por sua vez, começa lá onde ele tenta falar da diferença e da contradição das “coisas” na realidade e nelas mesmas.

À metafísica acrescenta-se, pois, o engodo da dialética – não mais compreendida como diálogo, mas como ontologia. Onde se perde o limite: quando uma “verdade” é inequivocamente revelada a partir da luta entre duas opiniões, como uma prova ad hoc aplicada ao universo. No entanto, este algo mais elevado que “suspende” as contradições precisaria também superar os aspectos dialéticos que incessantemente provocam, desde tempos imemoriais, o levante de uma posição oposta. Daí que refletir sobre uma meta-dialética recai inexoravelmente em um ponto no qual o elemento lógico passa para o plano ontológico. Em tal contenda, não se pensa apenas contraditoriamente, mas se encena mesmo uma contradição, de tal modo que, onde se discute, a metafísica continua em jogo.

Hegel levou a cabo o que se pode chamar de golpe ontológico da dialética, que então passa a abranger todo ente como parte de seu domínio. Com isso, o idealista alemão transformou o cosmos em um “processo dialético” que a tudo abarca, em consonância com um saber absoluto que dialoga com o espírito do mundo através de uma violenta cadeia de autodivisões e superações. Evidentemente, mesmo este que foi o maior edifício sistêmico da história da filosofia não escapou ao destino de se encolher a uma mera posição refutável – não tanto com Schopenhauer (que declarou ser Hegel um desvairado charlatão), mas especialmente com o materialismo, existencialismo, o primado do elemento romântico do “ainda-não” etc.

Todavia, a partir daí, o que estava efetivamente em questão não eram meras convicções antidialéticas. Pois o que quer que possa se seguir depois e contra Hegel estará vulnerável, quer queira quer não, à meta-dialética de um sistema destruído cuja superação dependeu de sua recusa. Este seria, ao menos, o desejo dialético: quando dois brigam, o terceiro se alegra. A posição dialética coloca-se neste nível de “terceiro superior”, sabendo que na luta entre opostos um terceiro adicionado sai na frente com pouco esforço. A miséria da dialética concentra-se nesta função de síntese, isto é, naquilo que se sobressai no conflito de forças. Miséria porque tal fantasia só faz sentido no lado do vencedor, para o qual o inferior deve se submeter e se ajustar à nova ordem – e assim o espírito do mundo hegeliano devora consciências adversárias e conquista sua soberania a partir de sua digestão.

II. Da contraparte trágica ou de como afirmar para se abster

Bem diferente é abster-se do conflito, sem antíteses e questões metafísicas que precisam ser decididas de maneira inequívoca, de um modo ou de outro. Retomemos, pois, o livro de Nietzsche que inicia este ensaio: para ele, a metafísica se caracteriza por “aquela inabalável fé de que o pensar, pelo fio condutor da causalidade, atinge até os abismos mais profundos do ser” (O nascimento da tragédia, § 15). Em contrapartida, o elemento trágico associado ao pensamento aparece quando, ao buscarmos conhecer a natureza das coisas, não encontramos nada senão respostas parciais, ilusões de totalidade. Não é que as coisas não possam ser conhecidas, é que o pensamento não acessa nada além dele mesmo. E querer enxergar nas coisas um sentido profundo, um mistério a ser decifrado, é no fundo o desespero de um pensamento ressentido que busca salvar-se de si. Nos termos de Nietzsche:

De agora em diante, senhores filósofos, guardemo-nos bem contra a antiga, perigosa fábula conceitual que estabelece um “puro sujeito do conhecimento, isento de vontade, alheio à dor e ao tempo”, guardemo-nos dos tentáculos de conceitos contraditórios como “razão pura”, “espiritualidade absoluta”, “conhecimento em si” –; tudo isso pede que se imagine um olho que não pode absolutamente ser imaginado, um olho voltado para nenhuma direção. – NietzscheGenealogia da moral: uma polêmica (Cia. das Letras, 2009, III, § 12).

Seria arriscado, claro, considerar como irredutível o próprio ato de pensar, já que ele pode se modificar por ser capaz de analisar-se, examinar-se. Só que, justamente por isso, é impossível encontrar fora dele um princípio geral que lhe sirva como natureza. A ausência de uma natureza prévia define todo o campo do pensável e, por extensão, todo o campo do que existe: mesmo conjuntos a que atribuímos, por exemplo, o nome de pedra, de planta, de homem ou de mundo, que por acaso configuram-se como generalidades estáveis, não passam de circunstâncias que somente a brevidade de uma perspectiva humana permite tomá-las como generalidades, conjuntos, naturezas. Porém, a rejeição de uma ordem prévia, alguém poderia dizer, implica também a rejeição da noção de ser: se a realidade não oculta qualquer natureza, como definir o que existe sem haver o que comprove tal existência?

Ora, é o pensamento que comprova as coisas e, antes disso, que quer comprová-las. Se retomarmos a reflexão de Nietzsche sobre a pretensão que existe na naturalização da linguagem (o que é o ser senão uma palavra?), reafirmaremos o óbvio: as coisas existem e deixam de existir sem dependerem de definição, nomeação, comprovação. Eis basicamente a antiga lição do Tratado do não ser ou da natureza, do sofista Górgias, ou mesmo do herói épico Ulisses ao recusar portar um nome, uma definição, na conhecida passagem da Odisseia (Homero) em que ele astutamente afirma chamar-se Ninguém ao Ciclope Polifemo. A ilusão metafísica logra se dissolver, enfim, se relegarmos a ontologia à noção de acaso ou, o que dá no mesmo, se elevarmos o acaso a um princípio ontológico a partir do qual o pensamento e a realidade podem se dar – eis o pressuposto do pensamento trágico.

Quando falamos em trágico decerto estamos aludindo à interpretação filosófica de aspectos da tragédia grega que, para Nietzsche, já teria atingido a reconciliação da “embriaguez e da forma” antes de começar a declinar, com a separação entre o apolíneo e o dionisíaco, mediante o decadentismo da razão socrática. Em linhas gerais, Apolo é o deus da clareza, da harmonia e da ordem, sendo o apolíneo um impulso voltado à individuação, à forma, à criação de aparências tendo em vista a medida; Dioniso é o deus da exuberância, da desordem e da música, sendo o dionisíaco um impulso que daria acesso ao informe, à diluição da medida, ao ritmo do acaso. Por trás das formas apolíneas, se estende o manancial dionisíaco que as perpassa, relação esta cuja força criadora teria sido progressivamente fragmentada com a separação dialética entre o essencial e o aparente, entre o verdadeiro e o falso, entre o inteligível e o sensível, entre a mente e o corpo, entre trabalho manual e intelectual, entre o cidadão e o político, entre o poeta e o filósofo, entre Eros e Logos.

A dualidade apolínio-dionisíaco serve para demonstrar como o pensamento metafísico consiste numa unilateralidade abstrata da razão a fim de dominar forças contraditórias. Deste modo, o texto nietzschiano transfigura a investigação acerca da tragédia em uma ontologia trágica, a qual diz respeito à tensão que o mundo da ordem, apolíneo, sofre quando constata seu não sentido, sua arbitrariedade, permitindo a irrupção do êxtase dionisíaco que tanto pode levar ao desespero como à alegria, sendo esta última trazida pela consciência do acaso. Tal consciência não admite pessimismo, ascetismo ou negação da vida, como o obscurantismo metafísico nos levaria a reagir, e sim a expressão afirmativa de um pensamento criador. A afirmação de um trágico alegre, aparentemente contraditória, depende justamente da criação de valores – o embuste é quando esquecemos que todos os valores foram criados por nós e vemos neles algo de transcendente, de eterno e de verdadeiro.

A despeito da incerteza que é comum a todos os homens, enquanto passíveis de se depararem com o efêmero e o corruptível, a filosofia socrática ter-se-ia proposto como tarefa “julgar a vida”, opondo a ela valores superiores, mediando-a por eles, impondo-lhe limites, condenando-a. Contra essa necessidade ou gosto por uma certeza que não encontra respaldo no mundo sensível, a filosofia trágica diz respeito a um saber silencioso, aquele da incerteza que nos mantém vinculados à aleatoriedade da vida. O saber trágico possui, portanto, uma característica afirmativa, que aprova a existência em toda sua contraditória inexorabilidade.

III. Da resistência dialética ou de como não há negação da negação

Sócrates colocou a tragédia na categoria das artes aduladoras, como algo irracional, que representa o agradável e não o útil, desviando o homem do caminho da verdade: “uma obra só é bela se obedecer à razão”, fórmula que ainda não cessa de vigorar em suas infinitas variações. Por sua vez, Nietzsche denuncia essa pretensa fixidez de nossos valores por meio de uma vontade que não se deixa compreender segundo um ideal (como o ideal budista de Schopenhauer), que não promete salvação alguma, que não se nomeia, mas que se expressa na articulação com o nome, com o formal, com o registro apolínio de que se serve. Entre apolíneo e dionisíaco, portanto, não há necessariamente antagonismo dialético algum.

É preciso pontuar, neste sentido, que compreender a realidade a partir da recusa de sua definição – a noção de acaso nunca foi “inominável” – seria manter-se no jogo dialético ao qual Nietzsche e os filósofos trágicos se furtam. Mesmo na noção do “eterno retorno”, que não significa uma volta do mesmo nem uma volta ao mesmo (conforme já discorri por aqui), a lógica dialética é substituída pela dimensão que antecede e condiciona qualquer oposição: o registro do acaso já considerado como anterior ao aparecimento dos valores, e copartícipe deles (no retornar eterno), permitindo um pensamento acerca do próprio ato de nomear e valorar. Aquilo que chamamos de dialética, pois, concerne a uma recusa de sua própria raiz.

A “dialética” de Heráclito, este pré-socrático que nunca se dispôs a convencer por meio da síntese, ancora-se em fenômenos constantes: ela vê a mudança das estações do ano, o ritmo de dia e noite, a maré-baixa e a enchente, a alegria e a tristeza, a vida e a morte etc. Essas considerações a princípio ingênuas mantêm diante dos olhos um jogo de dualidades complementares e não tanto antagônicas, uma rítmica incansável de fases e estados de ser, que estão indo e vindo. Heráclito compreendia todos os fenômenos, sem exceção, como pulsações, compassos, movimentos oscilantes sem um “todo”. Não vemos aqui o aspecto argumentativo da dialética socrática, porque entre o cosmos e a contemplação do homem (que não é o mesmo ao passar duas vezes pelo rio) não se abre nenhuma lacuna.

Logo, o filósofo ainda não assumia nenhuma posição “própria” e não se destacava como sujeito cognoscente dos fenômenos conhecidos. Na relação com um mundo em constante mutação, só havia para o homem uma postura válida: a entrega. Compreender significava estar de acordo. Nisso não há nada que nos lembre a relação dialética moderna entre sujeito e objeto; em todos os casos, sujeito entre sujeitos, força entre forças – sem resistência e ao mesmo tempo inserido ativamente naquilo que acontece. Já em Sócrates, contudo, a dialética atuava por meio da negação, em obstáculos e falácias para apontar um “fato verdadeiro”. Trata-se basicamente da revogação sublinhada por Nietzsche: a partir de então, distingue-se “eu e isso” a partir da posição de domínio e às custas do lado inferior.

Dialéticas positivas, de Platão a Lenin, atuam na práxis como obstáculos e falsificações daquilo que elas transformaram em seus temas: a contenda produtiva e o equilíbrio das forças. No conflito das forças, ela ensina, faz revelar o certo e o mais elevado. E na medida em que, sob esta mesma lógica, tudo se transforma em luta e negócio, guerra e troca, arma e mercadoria, morre o vivente heracliteano, para cujo desenvolvimento e elevação seria necessário, segundo a representação dialética, o conflito. Ao contrário do que gostaria Hegel, a dialética não é mais nem mesmo a forma de movimento da razão absoluta nos conflitos históricos, mas se torna – pensemos na manipulação stalinista da dialética – o cálculo de uma paranoia refinada.

Em seu turno, a tentativa de Marx de libertar a dialética da herança idealista e de fundamentá-la de maneira realista e empírica como teoria da realidade efetiva produziu, de antemão, uma fantasia de vitória: a justa distribuição das riquezas por meio da opressão dos opressores, a assim chamada ditadura do proletariado que anularia a oposição dialética entre explorados e exploradores. Ou seja, para escapar da unilateralidade dos dualismos hegelianos, inventa-se uma nova unilateralidade, a fantasia de um vencedor, para anular antagonismos. Em contrapartida, a intervenção da “dialética negativa” de Adorno, propondo-se como negação da negação, refere-se a esse ponto: se de um lado haveria o idealismo das forças hegemônicas e, de outro, o materialismo dos oprimidos, o que emerge da contenda não é mais uma síntese marxista-leninista, mas o erigir universal do primeiro lado, no sentido de plus ça change, plus c’est la même chose (quanto mais muda, mais permanece o mesmo) – e assim a tese heracliteana definitivamente desaparece no horizonte parmenidesiano.

Com efeito, a Teoria Crítica foi uma tentativa de se apoderar da herança dialética, mas agora sem tramar fantasias de vencedor – substituindo-a, claro, pela do “vencido”. Ao passo que a dialética materialista conserva um resto de polaridade, na medida em que acentua o fato de a travessia pelo polo oposto ser necessária (à vitória sobre o princípio oposto), a dialética negativa somente nega a síntese, sublinhando a função desta de retirar as armas do segundo elemento, subordinando-o. Só que é apenas no interior de sua própria lógica que a “negação da negação” soa neutra e justa. Porque ela também produz uma espécie de síntese, ainda que preventiva, lá onde uma antítese é sufocada antes de se fazer notar. A estratégia passa então a aplacar o contragolpe do outro lado antes mesmo de haver um golpe inicial, e isso por meio de uma prontidão crítica perante a “dor universal” (ilusão esta que tentei desmascarar por aqui) que nenhuma argumentação, radical ou reacionária, conseguiria trazer à tona.

Seja como for, por regular as diferenças em uma totalidade representativa, tomando como geral uma dualidade específica, a dialética recai invariavelmente no mesmo logro metafísico de querer “desmistificar” o acaso, cuja mistificação só existe dialeticamente na metafísica. Uma vez naturalizada, tal ficção nos conduz a buscar o inexistente, logo a encontrar a frustração. Uma esperança de completude que gera ela mesma a dor da incompletude, a exemplo do mito do desejo como carência, presente desde o discurso sobre o andrógino proferido por Aristófanes no Banquete de Platão. Tanto que, à força de determinismos sociais, de propagandas ideológicas moralizadoras generalizadas, a servidão se torna voluntária e, definição de niilismo, a vítima acaba até encontrando prazer na renúncia a si.

IV. Das consequências estéticas ou por que Duchamp é neoplatônico

Quando vistas de cima, as linhas de força que tencionam os múltiplos setores do contexto contemporâneo aparentam não mais estar vinculadas diretamente à mistificação dialética: se o enredo moderno pautou-se nas conquistas sociais, regimes ditatoriais, proletariado industrial, partidos políticos e sindicatos, as novas tendências apontam para uma sociedade que convive com a exclusão social em regimes democráticos, com trabalhadores independentes e predominantemente de serviços, com o protagonismo das comunidades e dos movimentos sociais, ecológicos e religiosos. As utopias igualitárias cederam lugar às utopias individualistas, o populismo à tecnocracia e o cientificismo ao relativismo. Esta síntese desgastada é obviamente módica e rasteira, sobretudo ao se sobrepor à dimensão estética que circunscreve uma trama metafísica ainda à espreita.

Vejamos em que consiste tal dimensão onde, a meu ver, reside o grande lastro metafísico atual. Em primeiro lugar, ao contrário do que querem aqueles que falam em nome de um Belo transcendente, o registro estético nunca foi o de superestrutura ideológica, mas o de infraestrutura cotidiana para todos os âmbitos sociais. De um lado, a arte provém desde sempre de uma convenção social: a dos xamãs pré-históricos, das forças políticas públicas (o faraó egípcio, o imperador romano, o rei persa, os papas da igreja etc.) e também a dos proprietários privados (os mecenas flamengos, os mercadores venezianos, os burgueses da Revolução Industrial e hoje as fortunas geridas por multinacionais). De outro, desde Platão, passando pelos idealistas alemães, teólogos negativos etc., o Belo é colocado à parte do mundo concreto, junto a outros ídolos como Verdade, Bem e Absoluto.

Por seu turno, o design também presta contas a modelos abstratos e convenções. O que chamamos de Útil ou Bom mantém uma relação estreita com o Belo: lógicas semelhantes, invisibilidades idênticas, faz-se muitas vezes do Útil uma religião substituta ou aliada do Belo, ambos sem conexão alguma com o plano imanente. Inacessíveis à razão pura, ao senso comum, incorruptíveis, imputrescíveis, design e arte tocam juntos seus negócios. O fetiche contemporâneo do bem de consumo desempenha o papel que tinham outrora a estatueta dos cultos primitivos, a pintura religiosa das igrejas, o retrato do soberano nos castelos; ao passo que, abatidos, os artistas recorrem ao velho equipamento conceitual com o qual comungam kantianos e hegelianos: o intransmissível, o indizível e o inefável, tanto quanto o serrote musical da transcendência mística e o quadrado branco que esconde um fundo branco.

Prometeu, ladrão de fogo, enganador dos deuses, ideal metafísico e dialético da modernidade, detentor dos meios de obter os pomos de ouro do jardim das Hespérides, continua com seu fígado exposto a um platonismo revigorado por ninguém menos que Marcel Duchamp. Com sua falsa revolução do ready-made, o conceito reina como senhor absoluto – não apenas no registro da arte conceitual, mas também na eflorescência sem fim de movimentos breves, fragmentados, natimortos. Defesa padrão: contra o legado kantiano na arte moderna, Duchamp problematizou uma beleza que, ao invés de agradar universalmente e sem conceitos, só concerne ao particular e com conceitos. Sua lição moral: não existe verdade intrínseca da obra de arte, mas uma verdade relativa e conjuntural.

Acrescentemos a isso duas proposições implícitas: de um lado, o artista produz algo, claro, mas quem é filtrado, para não dizer excluído, numa prova de esclarecimento e iluminação artística é apenas o espectador. Daí que se perpetua, num exercício autista e solipsista, uma coleção de neologismos que se legitimam com uma citação de Guattari, Deleuze ou Baudrillard, como se estes tivessem instaurado o senso oculto, o método conceitual, a verdade hermética da arte contemporânea. Nietzsche já havia ressaltado que, com o céu esvaziado, não faltarão deuses na terra: a obra de arte torna-se mais do que nunca uma “coisa mental”, como queria Da Vinci. Tal como um enigma socrático, ela cessa de responder e porta, desde então, uma carga de Sentido a ser decifrado. Mas na ausência de uma bússola mitológica, abortada de antemão, o beco sem saída do Absurdo kafkiano gera a angústia da qual se nutre o niilismo.

Abençoamos a virada platônica de Duchamp, que aboliu de sua república a univocidade ilusória da representação, com o gesto iconoclasta do assim chamado “design para um mundo real”, nos termos de Papanek. Qualquer nulidade plástica se torna digna de interesse se for justificada pela Ideia, pela Causa, pela intenção que prima sobre a compreensão, a favor de algo “mais real” que este mundo de contradições e divergências. Ora, mais real do que o próprio real só mesmo o olhar metafísico, ainda que sob o prisma da vacuidade, do intransmissível, do absurdo e do niilismo. Uma coisa deve dizer outra coisa além dela mesma, desde que vista por bons olhos: é preciso saber decodificá-la para poder entendê-la, logo também saber que se pode, isto é, poder saber. O problema não é codificar (nunca fizemos outra coisa), mas justamente o não-decodificar: o rei está nu, mas um punhado de membros da corte se pasma e, apesar da nudez, disserta sobre a beleza da indumentária invisível.

Por isso a arte do século XX foi codificada pela rarefação: a música dodecafônica e serial, via Webern, desemboca nos concertos de silêncio de Cage; a pintura abandona o tema pela luz, a luz pela abstração, a abstração pelo nada, o vazio de Maliévitch; o Nouveau Roman declara guerra aos personagens, ao enredo, à psicologia, à narração, ao suspense. Tudo isso vai em direção ao menos, ao nada, ao menos que nada – que se acredita “mais real” que tudo. De fato, não há nada mais efetivo para mistificar as coisas do que o poder performativo da desmistificação: a autoridade no assunto diz, e diz a verdade – não pelo que diz, mas por ser autoridade. Nas artes ditas performáticas, não obstante, é visível a recorrência de uma mesma celebração da ferida, da matéria fecal, da sujeira, da podridão, do dejeto, do sangue, da morte, do grito etc., conforme ironicamente demonstrado neste ensaio de Ursula Uchoa e sintetizado no depoimento do filósofo Michel Onfray:

Dejetos corporais escatológicos – urina, excrementos –, dejetos residuais fisiológicos – pelos, cabelos, unhas, sangue –, dejetos da razão pura – glossolalias, gritos, regressões, transes, cenografias neuróticas, teatralizações psicóticas –, dejetos do vivo – podridão, lixos, cadáveres, vísceras, ossadas, gordura humana, próteses, latas de lixo, poeiras… –, dejetos do real icônico – o parasita, a interferência, o rasgado, o manchado, o amassado – constituem matérias emblemáticas do niilismo da nossa época, visíveis nos happenings e nas performances, fotografias e vídeos faz tempo. – Michel Onfray, A potência de existir (WMF Martins Fontes, 2010, p. 88).

O descrédito do corpo sensível – corrompido, aberto, obsceno, torturado, mutilado – nos serve para tornar mais preciso o quadro da permanência do platonismo. À parte disso, sem a sublimação artística tal exibicionismo histérico é um sintoma clínico, nada mais. O objeto da crítica codificada (o consumo que aliena o assalariado etc.) torna-se o ícone diante do qual se efetuam preces estéticas, à maneira da Fábrica de Andy Warhol, que supostamente subverteu a inserção da arte numa sociedade do espetáculo: latas de sopa Campbell e retratos de JFK e Nixon, Coca-Cola, Elvis e Marilyn reproduziram, dialeticamente, a época que os produziu; a neurose de Warhol neurotizou um mundo que, por sua vez, o neurotizava. O kitsch exprime a quintessência deste truque: ele sublima um objeto trivial, banal comum, vulgar, em nome da mensagem que supostamente passa. Um pato de borracha colorido com pigmentos primários, deslocado da loja de 1,99, se torna, por obra e graça da unção intelectual (o discurso feito sobre ele), uma das modalidades da verdade estética contemporânea.

Trata-se de um cinismo vulgar que consiste em apenas gargalhar junto àqueles que gargalham, sempre sem saber qual foi a piada – o contrário, pois, do cinismo filosófico de Diógenes e Nietzsche, que visavam uma saída para o niilismo platônico decadente. Uma das diferenças é também performativa: Diógenes caminhava, em plena luz do dia, nas ruas de Atenas com uma lanterna da mão, procurando um Homem maiúsculo, a ideia de Homem, seu conceito – sem jamais encontrar nada, é claro, porque a Ideia não existe, só existe a realidade tangível. Sua aposta na ironia supunha a aproximação do espectador, e não que ele enxergasse uma indumentária invisível. Eis uma conduta cínica afirmativa em meio às ruínas atenienses em que ainda tropeçamos: o gosto pelo real, pela representação, pela ficção que se sabe ficcional e que nem por isso deixa de esculpir a vida como uma obra de arte. A sutileza reside em, ao invés de fazer da vida um enigma, saber produzir uma gama de gradações diversas para sentir e expressar a vida. Algo próximo, enfim, da heteronímia de Fernando Pessoa, que nunca se deixou confundir com esquizofrenia ou mistificação conceitual:

Quando Caeiro diz “A Natureza é partes sem um todo” o que nos dá a emoção de prazer é a phrase e não a sua verdade possível, ou o acceitamo-la por verdadeira. Mas é a phrase por ser assim com é, na sua vividez paradoxal. Se Caeiro houvesse dito a mesma coisa de outra maneira, de maneira philosophica – por exemplo, “A Natureza é essencialmente plural, e é impossível reduzil-a a unidade”, nada haveria de bello no dizer; a própria ideia perde realidade, descarnando-se, é esqueleto e philosophia. – Álvaro de Campos / Fernando Pessoa, Obras de António Mora (Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 2002, vol. 6, p. 121).

Marcos Beccari

Marcos Beccari

Doutorando em Educação na USP, designer gráfico e mestre em Design pela UFPR. Professor substituto no curso de Bacharelado em Design Gráfico na UFPR. Interessa-se por Filosofia, Psicologia e Comunicação, o que o levou a pesquisar sobre Filosofia do Design e a encarar o design como articulação simbólica na mediação ficcional que organiza o real. Além de atuar como professor e pesquisador, coordena o blog Filosofia do Design, integra o podcast AntiCast, é membro do projeto "Cinema e Educação: tela, espelho e janela" (USP-Fapesp) e colabora com outros blogs/revistas de design e comunicação.

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