Esse corpo que te seduz – I

Por Carol Zanelatto

Colaboração: Renato Faccini

Então foram abertos os olhos de ambos, e conheceram que estavam nus […] coseram folhas de figueira, e fizeram para si aventais (Genesis 3:7)

A nudez é a ausência de vestimentas. Porém, seu significado está relacionado à configuração cultural de uma sociedade.  Segundo Baudrillard, seja em que cultura for, o modo de organização com relação ao corpo reflete o modo de organização com relação às coisas e às relações sociais. Portanto, mais que algo natural, físico, o corpo é uma dimensão produzida pelos efeitos da cultura.¹

Em nosso ocidente, essa nudez está relacionada à sexualidade e isso é herança de uma educação católica: estar nu é estar com os órgãos sexuais à mostra, o que incita ao pecado ‒  o sexo é físico, carnal , e evidencia a vulnerabilidade do homem. Como é a dualidade construtora do pensamento ocidental, o caso não é diferente. Nessa breve reflexão, procura-se observar como o nu se configura e sustenta na história moderna através da arte em seus mais variados suportes.

Let me give you a little inside information about God. God likes to watch. He’s a prankster. Think about it. He gives man instincts. He gives you this extraordinary gift, and then what does He do, I swear for His own amusement, his own private, cosmic gag reel, He sets the rules in opposition. It’s the goof of all time. Look but don’t touch. Touch, but don’t taste. Taste, don’t swallow. (John Milton, personagem de Al Pacino em Advogado do Diabo)

Em seu tratado sobre o nu artístico, Kenneth Clark diz que o nu é “uma forma de arte, inventada pelos Gregos no século V. a.C., tal como a ópera é uma forma de arte inventada na Itália no século XVIII. A conclusão é certamente demasiado abrupta, mas tem o mérito de evidenciar que o nu não é assunto da obra de arte, mas forma de arte. ”

Ou seja, esse ideal ocidental de corpo perfeito tão exaltado a partir do século XVI é na verdade mais uma das histórias gregas retomadas pelos renascentistas. Consta nos registros de Vitrúvio que o homem – o corpo humano – é uma proporção correta, pois que em duas posições, os braços ou pernas estendidos se adaptam às formas exatas: o quadrado e o círculo.

As estátuas gregas são a construção idealizada de tudo que o homem enxerga como perfeição e materializa na forma mais ideal que pode conceber: deuses intangíveis, supremos e inalcançáveis em todos os aspectos, incluindo o erótico ou sensual.

Sarcophagus - Battle Between the Greeks and the Amazons

Sarcophagus – Battle Between the Greeks and the Amazons

A versão mais famosa do homem Vitruviano – mais que a original – feita por Leonardo da Vinci em 15

A versão mais famosa do homem Vitruviano – mais que a original – feita por Leonardo da Vinci em 15

Então a renascença, ‘despertando’ dos mil anos de trevas, retoma, entre outras coisas, esses valores que passam a ser tão decisivos na arte a partir do século XVI.  A representação desse período possui cunho científico e essa ideia do estudo e da representação do real remete ao sujeito e sua própria objetividade. A partir do século XIX, público e artistas começaram aos poucos a se interessar pelo corpo mais próximo do real e mundano. E, assim que a fotografia nasceu, não demorou muitos para os retratos de nus aparecerem, ainda que nos mesmos moldes das representações de arte. Com o passar dos anos, as roupas foram diminuindo na mídia, e a fotografia se tornou o meio de reprodução em massa do nu a partir da década de 50 do século XX,² na mesma mão do processo de desnudamento do corpo feminino, nesse meio.

Auguste Belloc, Reclining Nude – French, 1855

Auguste Belloc, Reclining Nude – French, 1855

De um modo geral, o corpo na cultura ocidental está intimamente ligado a uma questão artística de imagem e representação. Observar a trajetória da representação do corpo faz pensar em como o nu, na medida em que marca presença na arte da história moderna, é nela também um tabu, e como essa sociedade se constrói nessa dualidade – um nu que ora é belo ora é indecente. É possível perceber como o nu se configura e sustenta na história moderna através da arte em seus mais variados suportes, como a sociedade sustenta esse imaginário através da arte e como o nu é também sustentáculo da arte.

O corpo ainda é um tabu, e por isso é de certa forma um segredo compartilhado por poucas pessoas: cada corpo desperta uma curiosidade diferente em pessoas diferentes; cada corpo exibe padrões estéticos diferentes para cada pessoa que o observa. Nesse sentido, talvez faça mesmo parte do papel da arte dar uma dose de divertimento ao mundo. Em parte, porque ela lida com descobertas, desvendamentos; descoberta de segredos, tanto sobre execução técnica quanto subjetivos. E se Merleau-Ponty disse que o corpo é o pivô do mundo, a arte é, talvez, uma alcofa bem sem vergonha. Coisas a se pensar.

 

¹ HEILBORN, 1997.

² De um modo geral, o século XX acompanhou a subversão da arte em relação ao corpo: a partir da década de 60, a experiência com a corporalidade humana intermedia discussões acerca do corpo físico e autêntico; o corpo outrora idealizado é nada mais que um corpo manipulável.

 

Referências

  • [1] CLARK, Kenneth. O Nu- um estudo sabre o ideal em arte, Editora Ulisseia, Lisboa, 1956.
  • [2] Heilborn, Maria L. Corpo, sexualidade e gênero. In Feminino, Masculino: igualdade e diferença na justiça. (Org.): Denise Dourado Dora . 1997.
  • [3] LULA, lsabela Chaves. Retratos proibidos : o corpo nu na fotografia I. Campinas, SP : [s.n.], 2000.
Carol Zanelatto

Carol Zanelatto

é estudante de Design de Produto da UFPR e mantém um caso de amor entre tantas outras coisas, com você, o mundo, a arte e a CORDe Curitiba

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Esse corpo que te seduz – I

Por Carol Zanelatto

Colaboração: Renato Faccini

Então foram abertos os olhos de ambos, e conheceram que estavam nus […] coseram folhas de figueira, e fizeram para si aventais (Genesis 3:7)

A nudez é a ausência de vestimentas. Porém, seu significado está relacionado à configuração cultural de uma sociedade.  Segundo Baudrillard, seja em que cultura for, o modo de organização com relação ao corpo reflete o modo de organização com relação às coisas e às relações sociais. Portanto, mais que algo natural, físico, o corpo é uma dimensão produzida pelos efeitos da cultura.¹

Em nosso ocidente, essa nudez está relacionada à sexualidade e isso é herança de uma educação católica: estar nu é estar com os órgãos sexuais à mostra, o que incita ao pecado ‒  o sexo é físico, carnal , e evidencia a vulnerabilidade do homem. Como é a dualidade construtora do pensamento ocidental, o caso não é diferente. Nessa breve reflexão, procura-se observar como o nu se configura e sustenta na história moderna através da arte em seus mais variados suportes.

Let me give you a little inside information about God. God likes to watch. He’s a prankster. Think about it. He gives man instincts. He gives you this extraordinary gift, and then what does He do, I swear for His own amusement, his own private, cosmic gag reel, He sets the rules in opposition. It’s the goof of all time. Look but don’t touch. Touch, but don’t taste. Taste, don’t swallow. (John Milton, personagem de Al Pacino em Advogado do Diabo)

Em seu tratado sobre o nu artístico, Kenneth Clark diz que o nu é “uma forma de arte, inventada pelos Gregos no século V. a.C., tal como a ópera é uma forma de arte inventada na Itália no século XVIII. A conclusão é certamente demasiado abrupta, mas tem o mérito de evidenciar que o nu não é assunto da obra de arte, mas forma de arte. ”

Ou seja, esse ideal ocidental de corpo perfeito tão exaltado a partir do século XVI é na verdade mais uma das histórias gregas retomadas pelos renascentistas. Consta nos registros de Vitrúvio que o homem – o corpo humano – é uma proporção correta, pois que em duas posições, os braços ou pernas estendidos se adaptam às formas exatas: o quadrado e o círculo.

As estátuas gregas são a construção idealizada de tudo que o homem enxerga como perfeição e materializa na forma mais ideal que pode conceber: deuses intangíveis, supremos e inalcançáveis em todos os aspectos, incluindo o erótico ou sensual.

Sarcophagus - Battle Between the Greeks and the Amazons

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A versão mais famosa do homem Vitruviano – mais que a original – feita por Leonardo da Vinci em 15

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Então a renascença, ‘despertando’ dos mil anos de trevas, retoma, entre outras coisas, esses valores que passam a ser tão decisivos na arte a partir do século XVI.  A representação desse período possui cunho científico e essa ideia do estudo e da representação do real remete ao sujeito e sua própria objetividade. A partir do século XIX, público e artistas começaram aos poucos a se interessar pelo corpo mais próximo do real e mundano. E, assim que a fotografia nasceu, não demorou muitos para os retratos de nus aparecerem, ainda que nos mesmos moldes das representações de arte. Com o passar dos anos, as roupas foram diminuindo na mídia, e a fotografia se tornou o meio de reprodução em massa do nu a partir da década de 50 do século XX,² na mesma mão do processo de desnudamento do corpo feminino, nesse meio.

Auguste Belloc, Reclining Nude – French, 1855

Auguste Belloc, Reclining Nude – French, 1855

De um modo geral, o corpo na cultura ocidental está intimamente ligado a uma questão artística de imagem e representação. Observar a trajetória da representação do corpo faz pensar em como o nu, na medida em que marca presença na arte da história moderna, é nela também um tabu, e como essa sociedade se constrói nessa dualidade – um nu que ora é belo ora é indecente. É possível perceber como o nu se configura e sustenta na história moderna através da arte em seus mais variados suportes, como a sociedade sustenta esse imaginário através da arte e como o nu é também sustentáculo da arte.

O corpo ainda é um tabu, e por isso é de certa forma um segredo compartilhado por poucas pessoas: cada corpo desperta uma curiosidade diferente em pessoas diferentes; cada corpo exibe padrões estéticos diferentes para cada pessoa que o observa. Nesse sentido, talvez faça mesmo parte do papel da arte dar uma dose de divertimento ao mundo. Em parte, porque ela lida com descobertas, desvendamentos; descoberta de segredos, tanto sobre execução técnica quanto subjetivos. E se Merleau-Ponty disse que o corpo é o pivô do mundo, a arte é, talvez, uma alcofa bem sem vergonha. Coisas a se pensar.

 

¹ HEILBORN, 1997.

² De um modo geral, o século XX acompanhou a subversão da arte em relação ao corpo: a partir da década de 60, a experiência com a corporalidade humana intermedia discussões acerca do corpo físico e autêntico; o corpo outrora idealizado é nada mais que um corpo manipulável.

 

Referências

  • [1] CLARK, Kenneth. O Nu- um estudo sabre o ideal em arte, Editora Ulisseia, Lisboa, 1956.
  • [2] Heilborn, Maria L. Corpo, sexualidade e gênero. In Feminino, Masculino: igualdade e diferença na justiça. (Org.): Denise Dourado Dora . 1997.
  • [3] LULA, lsabela Chaves. Retratos proibidos : o corpo nu na fotografia I. Campinas, SP : [s.n.], 2000.
Carol Zanelatto

Carol Zanelatto

é estudante de Design de Produto da UFPR e mantém um caso de amor entre tantas outras coisas, com você, o mundo, a arte e a CORDe Curitiba

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