Ler imagens

Por Paula Cruz

Já dizia o sábio, o poeta, o caminhoneiro com sabedoria de rodoviária: uma imagem vale mais do que mil palavras. Este ditado parece tão óbvio como realmente o é — afinal, nem seu lado mais brega consegue descrever com precisão aquele pôr do sol bonito que você postou no Instagram. Por outro lado, nesta frase simples e mundana está escondida todo um impasse das artes visuais: a luta por uma linguagem própria e independente.

As artes, de um modo geral, nasceram basicamente conectadas com a narrativa. As pinturas rupestres contavam histórias de caçadas, a pintura clássica está relacionado aos mitos e contos gregos/romanos. Às vezes a pintura servia mais como uma ilustração, ou seja, estava intrinsicamente ligada a narrar uma história, do que realmente ser uma pintura.

Ao percorrer a história da arte, principalmente no último século, podemos perceber a busca por um método artístico puramente visual. Os impressionistas, revolucionários na época e odiados pela Academia classicista, começaram experimentos com cores e ótica a fim de trabalhar a pintura como meio de linguagem, e não só reproduzir a vida ao redor ou desenhar uma narrativa alheia.

Seurat foi um dos primeiros pintores a adbicar do caráter literário das artes visuais. Seu trabalho diz muita coisa ao detalhar quase nada. Pule para 1:24 do vídeo e vá direto para a parte em que Cameron, personagem de Vivendo a Vida Adoidado, enxerga o invisível no garoto pintado por Seurat. O quanto mais ele vê, menos ele enxerga. Quanto menos ele enxerga, mais ele vê a si próprio. 

A partir de então, o caráter literário das artes foi perdendo forças até que restasse apenas à literatura a função de contar histórias. Deixar de pintar a realidade de maneira literal foi um dos primeiros passos para poder colocar numa imagem o que não pode ser dito em palavras. Timidamente, a imagem veio caminhando a fim de ter sua própria maneira de se comunicar conosco.

Este verdadeiro plot twist na história da arte fez surgir um novo protagonista no cenário artístico: as formas abstratas. Puras e polêmicas, elas seriam o começo do que os artistas da época chamariam de verdadeira expressão visual. Sem as amarras e referências da linguagem escrita, as formas abstratas teriam significados intransponíveis para qualquer outra linguagem.

Num primeiro momento, a arte abstrata ainda tinha conexões com uma certa representatividade. Até mesmo o suprematismo, vanguardista  em sua essência, contou a história da revolução russa com círculos e triângulos sendo referências, comparações, ao exército vermelho e branco. Embora fosse inovador para a época, as artes abstratas ainda eram reféns do contexto narrativo.

El Lissitzky - "Bata nos brancos com uma cunha vermelha" | Um dos marcos do suprematismo russo é uma representação abstrata da guerra entre bolcheviques e comunistas. Este cartaz foi um dos marcos do abstrativismo, mas, mesmo assim, ainda está ligado a narração e a representação. As formas não são puramente formas, e sim sínteses visuais da realidade.

El Lissitzky – Bata nos brancos com uma cunha vermelha | Um dos marcos do suprematismo russo é uma abstração que ainda está ligada a narração e a representação. As formas não são puramente formas, e sim sínteses visuais da realidade — no caso, a guerra entre bocheviques e comunistas.

Porém, especialmente depois que Mondrian aprofundou seus estudos no mundo da cor e da forma, a arte caminhou para composições geométricas puras, sendo apenas e simplesmente isso. Nada mais. A arte abstrata sendo simplesmente o que ela é. Desta forma, o significado visual da forma tornou-se independente de qualquer tipo de texto.

Consequentemente, não é uma surpresa que tenham surgido artistas como Klein e Rothko, que trabalham a cor pura como linguagem. E fim. A cor seria a linguagem visual mais pura de todas, livre de amarras narativas.

Yves Klein - Monochrome bleu sans titre | Olhar o portifólio de Klein causa estranheza. Seu característico azul parece, à primeira vista, apenas uma predileção cromática. Um olhar mais atento percebe como Klein trabalhava a mesma cor com diferentes conotações, texturas e sentimentos.

Yves Klein – Monochrome bleu sans titre | Olhar o portifólio de Klein causa estranheza. Seu característico azul parece, à primeira vista, apenas uma predileção cromática. Um olhar mais atento percebe como Klein trabalhava a mesma cor com diferentes conotações, texturas e sentimentos.

Toda esta revolução nas artes acompanha também um certo treino do olhar e reconfiguração de convenções. Como estamos acostumados com visualidades narrativas, é difícil entender que podemos simplesmente ler figuras. A independência dos meios visuais ainda está refém do aprendizado de uma comunicação visual por parte do artista e do espectador. Um exemplo mundano vem a calhar: aprendemos a ler e escrever na escolinha, mas não temos uma alfabetização visual em nossa formação escolar. Além disso, temos também que expandir nossas concepções a fim de entender que é possível sim uma imagem ser lida independente de um texto.

Mesmo depois de 100 anos nessa luta que é ter uma genuidade linguística, a busca por uma linguagem própria nas artes ainda é uma constância. Ler imagens não é fácil, mas se elas valem mais do que mil palavras… com certeza vale a pena o esforço.

Paula Cruz

Paula Cruz

Paula Cruz é carioca e profissional em formação de design na UFRJ. Paralelamente aos estudos, constroi projetos autorais que unem design, texto e pesquisa, tais como livretos, cartazes e contos ilustrados.

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